Acho que todo mundo já notou que o ar em contato com a superfície quente do asfalto cria um efeito de “miragem”, que é como se estivéssemos a “ver” o ar em movimento. É possível ver tal fenômeno logo antes da largada de corridas de Formula 1, por causa do calor das pistas, dos motores e dos gases que saem dos escapamentos. Isso acontece em superfícies quentes e também em superfícies gélidas como as das regiões polares. Variações abruptas da temperatura do ar causam uma espécie de refração. Isso tem um nome: “fata morgana”, expressão que vem do italiano em referência à meia-irmã do Rei Artur que, “segundo a lenda, era uma fada que conseguia mudar de aparência ‘criando’ um efeito de ilusão óptica” (as aspas são porque tirei essa definição da Wikipédia”.
Werner Herzog fez um filme em 1971 com esse nome. Acho que poucas pessoas o assistiram. O cineclube da Faculdade de Arquitetura da USP promovia com frequência sessões de filmes de pouco apelo comercial, raramente exibidos em sessões comerciais. A primeira cena é a de um avião pousando num aeroporto no meio do nada. A câmera fixa “vê” a imagem sob o efeito da fata morgana. Essa cena se repete várias vezes “anunciando” que estamos chegando em um lugar de clima tórrido, no caso, ao deserto do Saara.
O filme, na época, impressionou-me. A trilha musical combinava perfeitamente com as cenas de paisagem desolada e despovoada. A amiga Ruth Klotzel disse que as canções eram de um cantor chamado Leonard Cohen. Procurei nas melhores lojas de São Paulo e não encontrei nada dele. Na primeira viagem que fiz a Nova York comprei o LP Songs of Leonard Cohen. E todas as músicas do filme estavam lá: Suzanne, So Long, Marianne, Hey, That’s No Way to Say Goodbye e Sisters of Mercy. Tornou-se meu disco predileto por muito tempo. A voz de Cohen era meio grave, melancólica e triste. Sem entender direito as letras, “via” as tais paisagens desoladas de Fata Morgana e imaginava que eram palavras de dor e abandono. No mesmo ano de 1971, Robert Altman dirigiu o filme McCabe and Mrs. Miller (Onde os Homens São Homens, em DVD, trocaram o título para Jogos e Trapaças). Warren Beatty era um jogador de cartas profissional que vagava de cidade em cidade atravessando regiões nevadas e desoladas. Eram viagens solitárias – ele e o cavalo – por lugares em que não se via uma vivalma. As canções que os acompanhavam também eram solitárias – a voz e o violão. Logo identifiquei que era Cohen. Provavelmente, nem Altman tinha visto o filme de Herzog e nem o contrário, mas era uma coincidência muito grande. No mesmo ano!
O canadense Leonard Cohen quando se tornou músico já era um escritor com algumas obras publicadas, o que explica a qualidade de suas letras, em contraste com a pobreza característica da maioria das canções pop/rock.
O melhor intérprete de Leonard Cohen é ele mesmo. Com quase 50 anos de carreira está sendo descoberto pelas novas gerações e estamos sempre a tomar conhecimento de intérpretes regravando-o. Sua voz, nos anos 1960, não era tão grave como agora. Mais áspera, perdeu um certo brilho. Devido a pequena amplitude de sua voz, o tom é sempre meio monocórdio. Pode-se dizer que inventou um estilo de cantar à sua medida. Suas limitações como cantor são camufladas pelos “backing vocals” femininos, violões acústicos ou esporádicas intervenções de algum outro instrumento. No século XXI a cozinha aumentou: presença maior de baterias, órgãos eletrônicos, saxes, gaitas e até algo parecido a uma guitarra portuguesa. Não dá para dizer que piorou. Pode-se dizer que, como todo mundo, transformou-se. Continua interessante. Alguns o compararão a Serge Gainsbourg ou ao australiano Nick Cave.
Vamos a Leonard Cohen pelos outros. Na área jazzística, Suzanne foi cantada por Dianne Reeves, René Marie e pelo novo darling do show business, Michael Bublé. No pop/rock temos First We Take Manhattan com o R.E.M., Hey, That’s No Way to Say Goodbye, com IanMcCulloch, vocalista do Echo & The Bunnymen, So Long Marianne com a banda inglesa James, Chelsea Hotel com Lloyd Cole, Hallelujah com John Cale, ex-membro do Velvet Underground, Suzanne com Nick Cave e uma estonteante Who by Fire pela banda underrated House of Love. Sua conterrânea k.d. lang, como de costume, interpreta um irretocável Hallelujah e um belo Bird on a Wire em seu último CD Hymns of the 49th Parallel. Num terreno que nem é pop nem é música erudita, a canadense Patricia O’Callaghan no CD Real Emotional Girl interpreta várias de seu repertório: Hallelujah, I’m Your Man, Take This Waltz e A Singer Must Die. Vale a pena ouvir.
Uma sugestão para se conhecer todos os sucessos de Cohen é o recém-lançado Live in London, duplo, que saiu em abril deste ano. Ele fala um pouco demais no show, mas está perdoado depois de tanta coisa boa que compôs.
kd lang: http://www.youtube.com/watch?v=P_NpxTWbovE&feature=related
Patricia O’Callaghan: http://www.youtube.com/watch?v=pYLsH0KQCl4
Leonard Cohen / ‘Hallelujah’: http://www.youtube.com/watch?v=ttv5dyvtF4o&feature=related
Publicado em 8/10/2009
Alguém postou esse link e eu acabei chegando atrasado nessa sua elegia ao Leonard Cohen, de 2009. Nunca vou me esquecer dessa sessão de Fata Morgana na FAU e adorei saber que foi a Ruth que lhe deu a dica do compositor da trilha. Nunca revi o filme e não sabia que as músicas eram dele. Gostei de lembrar do Gainsbourg, do Cage, tudo como num flashback do verão da lata. Muito bom Guen, agradeço a viagem.
ResponderExcluirGuen, adoro a voz rouca e sensual do Leonard Cohen. As letras de suas músicas são uma verdadeira poesia ;)
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