As irmãs Labèque. Katia é a da esquerda |
Ao gravarem Rhapsody in Blue, de Gershwin, elas conseguiram a surpreendente marca de quase meio milhão de discos vendidos. Não é pouco. E olhe que Rhapsody… nem pode ser considerada peça do repertório popular. É sim, no máximo, uma música “fácil” tanto quanto as Quatro Estações, de Vivaldi, ou Carmina Burana, do neoclássico Carl Orff, mas são do universo erudito. Nem um intérprete de Mozart nem de Beethoven conseguiu tal proeza. Não sei se seria temerário especular-se que esse meio milhão não é apenas pelo talento delas. Primeiro, devemos considerar que, além de ‘Rhapsody…’ ser bem conhecida, segundo, que por trás delas estava uma das mais poderosas gravadoras, e por conseguinte, uma boa estrutura de maketing. São duas belas e charmosas virtuoses. Num universo que até há pouco tempo o item beleza era posto em segundo plano e o talento em primeiro – Wanda Landowska, Birgit Nilsson, Montserrat Caballé –, a união dessas duas qualidades era um ponto a ser explorado. De hoje em dia, ficou comum. Temos cantoras belas como Anna Netrebko, Anne Sofie von Otter, ou virtuoses como a violinista Anne-Sophie Mutter com seus vestidos Dior. Ninguém importava se a irresistível e selvagem Carmen da ópera de Bizet era enorme de gorda… e feia. É indubitável a perversidade desse mecanismo em detrimento do talento. Andy Warhol tinha previsto e tudo se confirma com a quantidade de publicações focadas nesse mundo superficial das celebridades. Como diz um amigo, numa afirmação politicamente pouco correta, para se fazer sucesso é preciso beleza, carisma e talento, nessa ordem. A “big brother” atriz Graziela Massafera não nos deixa mentir. Para os verdadeiramente talentosos, hoje, o caminho para o sucesso é bem mais cheio de obstáculos.
Na carreira das irmãs Labèque há um equilíbrio desse discreto charme de suas belezas: gravaram Bártok, Brahms, Ravel, Tchaikovsky, Rachmaninov e Poulenc. Confirmando que, antes de mais nada, são talentosas, Katia e Marielle tiveram o privilégio de serem as primeiras a gravar peças de compositores contemporâneos como Pierre Boulez, Luciano Berio e Gyorg Ligeti. É um bom handicap.
Por motivos extra-musicais – a especulação é minha –, provavelmente, a ligação mais que profissional de Katia com o guitarrista John McLaughlin, tenha influenciado no interesse pelo jazz. Outra possibilidade é a de que, pelo fato de pertencerem a uma geração que viveram as revoluções de costumes dos anos 1950 e 60, ouviram e “viveram”, além da música clássica para o qual foram treinadas desde criança, outros gêneros musicais.
Não comentarei sobre os discos de música clássica, que foram exaustivamente resenhados pelas revistas especializadas. Irei me ater rapidamente apenas aos dois voltados ao jazz:
O primeiro a ser gravado, em 1991, foi Love of Colors. É um disco desigual, mas que tem uma enérgica interpretação de Spain, de Chick Corea. Rhythm-a-Ning, de Thelonious Monk, Blue in Green, de Bill Evans, e Caribe, de Michel Camilo, e Ballade do franco-argelino Martial Solal, são um bom complemento. As quatro peças de John McLaughlin são dispensáveis: não fazem parte da melhor fase do camaleão inglês.
Cabe uma observação no que concerne não só a elas mas aos intérpretes de música clássica. Em Love of Colors, todas as músicas foram arranjadas por François Jeanneau – habitual parceiro nas adaptações para o formato de dois pianos ou a qutro mãos – e McLaughlin. Katia e Marilelle interpretam apenas o que está registrado nas partituras. Pianistas clássicos não improvisam. Como diz a própria Katia em matéria para a Classic FM: “Não tenho base nem treino para ser uma verdadeira improvisadora de jazz, embora amasse em poder ser. Então entro na música como intérprete.” Nelson Freire, no documentário dirigido por João Moreira Salles, revela sua paixão pelo pianista de jazz Erroll Garner. Freire se encanta pela habilidade de Garner e, principalmente, pela sua capacidade de improvisação. Diz que queria tocar como ele. É: cada macaco no seu galho.
Little Girl Blue é um disco de duos, de Katia mais algum convidado. A irmã Marielle, que aparece em apenas uma faixa (On Fire), pelo jeito, não tem o interesse por jazz que a outra tem. Stuart Isacoff, em Piano Today, classifica Katia como yang e Marielle, ying. Elas se complementam, seguem juntas e são um dos únicos duos do mercado da música clássica.
O álbum gravado em 1996 é cheio de grandes momentos. Cada parceiro soube imprimir uma marca diferente interagindo com Katia. Chick Corea comparece com as poéticas We Will Meet Again e Turn out the Stars; o elétrico ex-fundador do Weather Report, Joe Zawinul, recentemente falecido, faz um duo em Volcano for Hire; o grande – nos dois sentidos – organista Joey DeFrancesco mostra que se defende muito bem no piano em Summertime. O cubano Gonzalo Rubalcaba comparece em três oportunidades: no belíssimo Besame Mucho, em Prologo Comienzo e no clássico bolero Quizás, Quizás, Quizás. As partes de Katia foram previamente escritas por seus parceiros ou são transcrições de outros autores, como Oscar Peterson, na bela música título Little Girl Blue, a única que Katia toca sozinha. A melhor do CD, no entanto, é My Funny Valentine, com Herbie Hancock. É estupendo: começa fora do tema e, sem aviso, imergimos no belíssimo tema consagrado por Frank Sinatra e Chet Baker.
Katia Labèque e Joey DeFrancseco em Summertime.
Um arranjo interessante de Bolero, de Maurice Ravel, com dois pianos e percussão.
Publicado em 17/3/2010
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