Lembro que, por recomendação de alguém, conheci uma pequena loja de discos que ficava espremida entre a Cultura Inglesa e a delegacia do bairro. Na rua Lacerda Franco gastei boa parte da minha mesada em lps na Edgar Discos. Era uma dessas casas de bairro cuja frente resumia-se à janela do quarto da frente e uma entrada lateral que possuia um portão baixo de ferro. Quatro ou cinco degraus acima, passava-se pela porta e pelo quarto da frente e, logo depois, à direita, chegava-se a um cômodo que não devia ter mais que quatro por quatro metros, entulhado de discos novos e usados. O “filé” eram os de segunda mão, principalmente para alguém que recebia uma mesada “na conta”. Economizava no lanche e no cinema para poder comprá-los.
Era uma família estranha. O Edgar usava um óculos de armação pesada, preto, que ampliava seus olhos e sua roupa não denotava que tinha sido alfaiate antes de ter a loja: calças mal ajambradas, meio largas, que iam descendo e deixava à mostra sua cueca “samba-canção”, daquelas que, antigamente, eram de ilhoses – sem elástico na cintura – e, por vezes, revelavam o que hoje chamam de “cofrinho”. Quase sempre sua mãe estava sentada numa cadeira vestida com camisolas de malha suedine branca com estampas coloridas e chinelos com meias soquete, geralmente cinzas, de lã. Tinha os cabelos grisalhos bem crespos, sempre puxados para trás e presos. Conversava de vez em quando com os clientes. Tinha o rosto comprido e suas bochechas saltadas marcavam a região da boca, dando-lhe uma aparência meio canina, meio “guarda” do pedaço. Sua esposa era uma senhorinha pequena de lábios bem finos e boca característica de quem usava dentaduras mal ajustadas, voz esganiçada de sotaque indefinível e seu indefectível “Edegar”. Tinha uma filha também, que quase sempre estava na loja. Usava uns óculos meio fora da moda e, como devia ter hipermetropia, como seu pai, seus olhos ficavam ampliados através das lentes e parecia um pouco com aquela moça que trabalhava no programa humorístico ‘Chaves’ que, até hoje é exibido na emissora do senhor Silvio Santos.
Fora essa estranheza toda, no setor dos discos novos, Edgar sempre tinha as últimas novidades. O bom era que sempre recebia discos promocionais com um selo em hot stamping onde se lia “Produto Invendável”. Custavam quase sempre a metade de um novo. Como recebia poucos desses, a tática era passar pela loja com frequência, o que no meu caso, era umas três vezes por semana.
Os discos usados ficavam nas prateleiras inferiores, cuidadosamente separados por gêneros. Ia direto nos setores de jazz e de música clássica. Lá estavam as “joias”, aqueles discos importados “detestados”, avant-garde demais, atonais demais, que não batiam com o gosto “normal” e eram uma pechincha. Formei boa parte de minha discoteca no Edgar. Além dos avant-garde como o Art Ensemble of Chicago, Anthony Braxton e Cecil Taylor, garimpei meus primeiros Art Tatum. Até hoje é um dos meus pianistas preferidos.
Alimentou também minha discoteca de música clássica. Tinha uns poucos discos de Bela Bartók, Debussy, Stravinsky e Mahler, comprados na loja Bruno Blois. No Edgar, arriscava mais. Se a aposta fosse errada, não teria custado muito dinheiro. E a oferta era bem razoável. Nessa busca pelo “desconhecido” comprei um disco com canções de Mahler, cantadas por um barítono de quem não me lembro mais o nome. Foi uma revelação. Paixão à primeira vista. Desde então, adoro os lieder cantados em alemão, principalmente. A voz humana é fascinante.
Um outro disco que comprei lá e me marcou foi o Vier Letzte Lieder (As Quatro Últimas Canções’, de Richard Strausss, cantada pela espanhola Montserrat Caballé e regência de Alain Lombard, da gravadora francesa Erato. Foi um impacto. Não tornou-se a minha peça de cabeceira apenas porque dificilmente ouço música deitado na cama. O primeiro lied, Frühling (Primavera) é fascinante. Seu início é impactante. É tensa, de beleza dramática e, ao mesmo tempo, transmite uma sensação de paz crepuscular. Não é à toa que são as últimas peças completas compostas por Strauss. O compositor de Also Sprach Zarathustra deve ter ido para o céu depois desse “testamento”.
Pelo interesse pela música cantada descobri a Canção da Terra (Das lied von der Erde), de Mahler – que comprei usado no Edgar, com regência de Bruno Walter –, depois, descobri os lieder de Schubert, Schumann, Canteloube, Poulenc e Duparc. Descobri que mais atrás existiam as ‘Paixões’ de Bach, sua Missa em si menor, o Vespro della Beata Vergine e Orfeo, de Monteverdi, as canções de trevas de Charpentier. É um universo sem fim.
Por conta de um tanto de obsessividade, quando gosto de uma peça, procuro ouvir várias versões para poder compará-las. Tenho várias versões do Cravo Bem-Temperado, das Suites para Cello, de Bach, do Vespro della Beata Vergine, de Monteverdi, e de Vier Letzte Lieder, de Richard Strauss. E, assim conheci Elisabeth Schwarzkopf.
Veja e ouça Richard Strauss / Im abendrot com outra excepcional cantora, Renee Fleming:
Saudades do Edgar Discos. Não era ele que também vendia envelopes plásticos para proteger vinis?
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