quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O Gismonti que eu gosto

Saudações é o nome do último álbum gravado por Egberto Gismonti. São dois CDs. Não sei se serão lançados aqui. Há muito tempo – uns trinta anos, creio –, EG criou um selo – Carmo –, pela EMI. Alguns discos dessa gravadora foram lançados no mercado europeu e, no Brasil, nada. Admirável o interesse das gravadoras. Pelo que consta, a EMI, dona dos fonogramas, recusa-se a disponibilizá-las, enquanto EG quer doá-las. Em entrevista em 2004, disse que não entende como não pode dar alguma coisa que é sua.

Apesar da produção intensa, há tempos o hiperativo Egberto não lançava um disco. O CD 1 é uma peça orquestral para cordas, cujo nome é Sertões: Veredas. A referência a Guimarães Rosa é casual: não tem nada a ver com o livro. Porém, título mais “regional”, impossível. Ironia: EG é o mais internacional dos nossos músicos. Sua formação musical é um “mix” de sua formação erudita – estudou com Nadia Boulanger, mestra dos clássicos (Aaron Copland), dos “populares” (Michel Legrand) e dos “nem tanto eruditos” (Philip Glass) – e seu interesse pela música popular.

O Sertões…, em São Paulo, mereceu matérias nos dois maiores jornais. O jornalista João Marcos Coelho ocupou uma página para falar desse lançamento. Na Folha de S. Paulo deram meia página. As duas são elogiosas, como não poderiam deixar de ser. Concordando, mas já discordando um pouco, acho que há um certo exagero nas loas. A Suite, apesar da competência de sempre, é desigual. Desconfio um pouco de obras ambiciosas demais. Nas notas internas de Lilian Dias, tiradas a partir dos depoimentos de Gismonti, Saudações tem como subtítulo tributo à miscigenação. EG pretende um “amálgama” do “culto” e o “popular”. Por excelência, uma orquestra de cordas faz parte da tradição europeia acadêmica. Ela é dividida em sete partes que compõem uma suíte, forma musical clássica. Vamos a alguns esclarecimentos dos propósitos de EG: “Beethoven é aqui uma presença constante. O tema é a interligação da cultura mundial que encontra no Brasil, na miscigenação, uma lente de aumento, um foco de expressão. O tema é também a melancolia europeia transportada para os trópicos através da escravidão, do isolamento, da chibata. […] Ouvem-se muitas chibatadas ao longo de todo o movimento. Há a percepção da fragilidade, não apenas do oprimido, mas também do opressor, que só encontra no uso da força a frágil possibilidade de manutenção do poder.” Sobre as influências da viagem de EG ao Xingu: “Ouvem-se aqui dinâmicas diferentes que representam os movimentos das danças indígenas, não em suas melodias, mas em suas pulsações rítmicas. Desta maneira, a música dedicada ao mais primitivo é também a mais moderna, no nível das dissonâncias.” Sobre a Parte IV, que representa o modernismo brasileiro: “São estruturas arquitetônicas brasileiras, é a homenagem à Brasília e seu regente, Oscar Niemeyer. No segundo submovimento, ouve-se, surpreendentemente, uma escola de samba tocada pela orquestra de cordas.” Isso me faz lembrar da 6ª Sinfonia “Pastoral”, de Beethoven em que os sons remetem a uma festa de camponeses e, em seguida, a chegada de uma tempestade, se não me engano. Cito apenas para uma referência comparativa nas tentativas de se “musicar” uma narrativa. Isso funciona? Acho que funciona mais o resultado da música em si. É pedir demais ao ouvinte. Nessa “ambição” de Gismonti fica uma sensação de “dar um passo maior que as pernas”.

Independente das pretensões de Gismonti, é uma peça de fôlego em que não faltam momentos de beleza, principalmente nas partes V, VI e VII. Aí mostra seu talento composicional costumeiro com belas melodias que exibem influências de Debussy e Ravel e, claro, de Villa-Lobos. Nas primeiras ‘partes’, a mistura não é coesa: temas nordestinos, indígenas, urbanos, “metal/martelado” de Penderecki, Mozart, Beethoven, contrapontos e Bach, por vezes, não se fundem direito.

Em sua experiência anterior pela gravadora ECM, Meeting Point as peças são mais curtas e, na minha opinião, mais bem resolvidas. Meu amigo Edemar Viotto discorda. Agora, o melhor em termos de arranjos orquestrais está no álbum Nó Caipira, infelizmente inédito em CD no Brasil. Esse álbum é o Gismonti que mais gosto, junto com o genial Dança das Cabeças, que fez com o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos. Em  pode-se dizer que EG se supera na orquestração e faz juz a Villa-Lobos. Palácio de Pinturas é um monumento. Parece que estamos no meio de uma floresta virgem, sós. As cordas são dramáticas e os “pássaros” do percussionista Zé Eduardo Nazário apenas aprofundam essa sensação. Interessante como, sem querer ser explicitamente narrativo, é. Palácio é climático e épico.

Igualmente épico é Sertão Brasileiro. A entradas das cordas é solene, grave. É uma peça genuinamente erudita e tem referências de Villa-Lobos. O Sertão mais intenso e rico está mesmo em  e não em Saudações. Nesta música, as cordas formam um tecido denso com o naipe das madeiras. A peça a seguir não é para orquestra, mas é uma homenagem a Villa-Lobos e chama-se Selva Amazônica. Ouço Nó Caipira com frequência há mais de trinta anos.

O segundo CD que compõe Saudações é uma série de performances de EG e seu filho Alexandre Gismonti. Duas das faixas são solos do filho: Palhaço e Chora Antônio, composição dele. Saudações, que dá nome ao disco e faz parte de Nó Caipira, é tocada somente por EG. O restante são em duos e, quase todas, composições de Egberto bem conhecidas. É um show de virtuosismo.

Para quem imaginava que apenas os vírus eram transmissíveis, fica provado que talento, pode sim, ser também “transmissível”. A “alma” Gismonti está presente no filho. A diferença é que o filho é menos “esquizofrênico”. Gismonti, como o americano Ralph Towner, são violonistas que parecem tocar em “overdub”: passam, muitas vezes, a sensação que são dois, quando são um. O CD “violonístico” é inteiro bom. Os destaques são o meddley Mestiço & Caboclo e Água & Dança, que faz parte do memorável Dança das Cabeças.

Bom, o que dizer, apesar das ressalvas? Compre o disco.

Ouça Zig Zag, com Gismonti e o filho Alexandre:


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