Toda vez que vou a Buenos Aires não deixo de passar por duas lojas em busca de CDs, DVDs e livros: a Ateneo, da av. Santa Fé, e a Miles Discos, que fica na Calle Honduras. Qualquer brasileiro, por mais inculto que seja, deve conhecer a Ateneo. É considerado ponto turístico por ser um teatro adaptado e, realmente, é bem bonito, até para os analfabetos. Para os que se ligam à cultura é prato cheio. Cada vez que vou, procuro o setor dos artistas argentinos e sempre encontro um novo título do grande Hermenegildo Sábat. Conheci-o através dos desenhos que fez de figuras importantes do jazz e da música argentina. Meu amigo Alberico Cilento, que o conheceu, disse que, em uma reunião de apreciadores de jazz, em São Paulo, fez um desenho do ídolo de cada um dos que estavam presentes. Ele ganhou um do pianista Erroll Garner. Desta vez, encontrei um sobre Astor Piazzolla e outro sobre Charlie Parker, que se chama
El pájaro murió de risa, ambos da Universidad Nacional de Quilmes Editorial. Os desenhos de Sábat são quase pinturas. Possui uma técnica especial com aguadas de nanquim e aquarela. Escreve também. Seus livros são uma mescla de textos e desenhos. Da penúltima vez, comprei um de Fernando Pessoa, o que me faz concluir que os interesses de Sábat não se resume à música.
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Charlie Parker por Hermenegildo Sábat |
Especial porém, na minha opinião, é a Miles Discos. Fica em Palermo Soho – um bairro que parece ao Soho novaiorquino e à Vila Madalena, São Paulo – e tem algumas características que me fazem lembrar de casas de discos como a finada Edgar Discos e uma outra que fechou há mais ou menos dois anos: a Nuvem Nove, que ficava na rua Clodomiro Amazonas, SP: essa deixou uma grande legião de saudosos. Ao contrário das grandes redes como a Fnac, a Livraria Cultura ou a Livraria Saraiva, muito impessoais, essas lojas eram pontos de encontro e possuiam a particularidade de podermos ser amigos dos donos, que sabiam tudo o que tinham à venda, davam palpites do que achavam bom ou não e, até, no caso da Nuvem Nove, o Zé trocava discos se, porventura, não tivesse gostado. Uma que ainda mantém algumas dessas características, em São Paulo, é a Pop, que fica numa galeria situada à rua Teodoro Sampaio, região tradicional de comércio de instrumentos musicais.
Conheci casualmente a Nuvem Nove quando era uma pequena loja em que se vendia, principalmente, discos usados. Seus únicos atendentes eram o Zé Carlos, o dono, e seu irmão Ricardo. Gostava de brincar com eles dizendo que tinha mais discos que eles. E era verdade. Aumentou a clientela e o número de títulos. Era frequentada por uma fauna de amantes dos mais variados gêneros musicais. Os axés, pagodes, Sangalos e Mercuries eram comprados pelos clientes acidentais das horas de almoço durante a semana. Os sábados eram especiais: na certa, depois de acordar, era onde marcava meu ponto.
Certamente, num lugar como Buenos Aires, para o turista seja mais difícil de se ter essa intimidade, mas a impressão que se tem é a de que seus habitantes e frequentadores contumazes conheçam seus donos. A Miles Discos é uma pequena loja em que tudo parece meio improvisado, meio apertada, entulhada de discos em uma sala e em outra, livros. Aos poucos, estão ampliando os serviços: montaram um Café e uma lojinha – Miles Cine –, que vende desde camisetas a quinquilharias ligadas ao cinema e à música. No sábado pré-páscoa, do outro lado do balcão tinha uma pessoa de cabelos longos e grisalhos, barbudo, com aqueles óculos básicos de aro redondo. Paguei os discos e DVDs que comprara para uma mulher de belos olhos azuis claros e longos cabelos grisalhos. Bonita, e não tingia os cabelos, coisa quase inimaginável de se ver em São Paulo e que não é tão incomum em Buenos Aires.
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Fachada da loja que fica na Calle Honduras 4.912 |
Onde mais encontraria um CD do barítono Thomas Quasthoff, conhecido pelas gravações que fez dos lieder de Gustav Mahler sob a regência de Pierre Boulez, cantando – e bem – jazz e, ao mesmo tempo, o último CD de Dave Holland e um do clarinetista Gianluigi Trovesi com o acordeonista Gianni Coscia interpretando Kurt Weill? Só isso já faria valer a visita. A outra são os preços que se pratica no nosso país vizinho. Onde seria possível achar um CD da pianista brasileira Eliane Elias cantando bossa nova por 16 reais, ou o CD
Rambling Boy, de Charlie Haden por 16,70 reais? Pode?
Imagino que Miles Davis tenha sido a inspiração para o nome da loja. Ouça o clássico
So What.
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