sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Elisabeth Schwarzkopf: beleza e talento

Não me lembro bem, mas um dia a loja de discos do Edgar deixou de existir. Laconicamente, se foi, assim como tantas coisas. Ficaram as lembranças.

Dificilmente passo pela rua Lacerda Franco, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. A única razão de passar por ela era a Edgar Discos. Como a loja, as centenas de LPs que comprei lá não estão mais comigo. Fui trocando por cds as minhas gravações preferidas.

Já na era do CD, adquiri Vier Letzte Lieder, de Richard Strauss, com regência de George Szell e cantada por Elisabeth Schwarzkopf. Desde então, ela é uma das minhas cantoras preferidas e esses lieder estão entre as coisas que levaria para uma ilha deserta.

A bela ariana Shwarzkopf
A música erudita é a seara das grandes divas: Maria Callas, Brigitte Nilsson, Janet Baker, Kathleen Ferrier, Kirsten Flagstad. Eram assim chamadas. Hoje usa-se menos essa expressão; deve ser de época. Ninguém fica chamando Cecilia Bartoli e Anna Netrebko de “divas”. E olhe que elas merecem. Episódios como o de Franco Zefirelli ter sido cruel em dizer que a soprano Daniella Dessì não seria a mais apropriada para ser a Violeta da ópera La Traviatta, no tempo em que Callas competia palmo a palmo com Renata Tebaldi, se as duas não poderiam ser consideradas feias – especialmente Tebaldi –, nunca seriam criticadas ou massacradas por falta de beleza ou esbelteza.

Aos cantores o importante era ter boa voz para seus papéis e ter um mínimo de capacidade interpretativa nos palcos. Num processo que combina bem com nossos tempos, as grandes cantoras passaram a ser belas também. Não é um elogio nem uma crítica. Uma vez, indo assistir a Nijinsky, peça montada por J.C. Violla, encontrei com o jornalista Edmar Pereira, que escrevia no Jornal da Tarde (SP). Ele estava saindo da primeira sessão e eu ia ver a segunda. Perguntei se tinha gostado. Edmar respondeu que sim, mas seria necessário um pouco de imaginação. Disse que era mais ou menos como nas óperas: teríamos de imaginar que “aquela senhora enorme e feia” era a irresistível Carmen da ópera de Bizet. “A gente tem que imaginar que o Violla é o Nijinsky.” Sem desmerecer cantores de outras gerações, o espaço de uma wagneriana como a sueca Birgit Nilsson – não confundam com Brigitte Nielson, ex-mulher de Stallone – seria muito mais acanhado do que sua real dimensão.

Agora, se Maria Callas era uma “diva”, para Elisabeth Schwarzkopf o termo “deusa” seria o mais apropriado. Opinião minha. E ela tinha algo a mais: naquele tempo, quando a beleza não era atributo a ser tão considerado, Schwarzkopf a tinha de sobra. Aquela beleza germânica que, de vez em quando, parecia a de Marlene Dietrich, a deixava majestática nos palcos. Era impossível desviar os olhos. E que voz!

Foi o que me foi revelado em Vier Letzte Lieder. Alguém podia cantar melhor que “La” Caballé. A música que demandava alternâncias bruscas de agudos e graves podia ser cantada “linearmente”, sem que os agudos machucassem seus ouvidos ou os graves soassem “forçados”. Era a diferença da lixa e do veludo. Com que plasticidade os sons navegavam pelas oitavas acima e abaixo. Schwarzkopf era uma autoestrada alemã e Caballé uma estrada federal brasileira. Maldade com Montserrat Caballé, mas é para enfatizar as qualidades da germânica.

Elisabeth era grande, não apenas com Strausss, mas com Mozart e, principalmente com Hugo Wolff, que ela ajudou a popularizar com as gravações que fez nos anos 1950. Schwarzkopf era perfeita, mas como o mundo não é perfeito, na juventude filiou-se ao partido nazista e existe até uma fofoca de que teve um caso com Joseph Goebbels, ministro de Hitler, conforme escreveu o crítico Norman Lebrecht na ocasião de sua morte, em 2006.

Nos anos 1950, Schwarzkopf ligou-se afetivamente ao produtor musical Walter Legge, todo-poderoso da gravadora EMI à época. Mudou-se para a Inglaterra e tornou-se mais conhecida ainda. Existe um DVD – Elisabeth Schwarzkopf – Broadcasts from 1961-1970 (Medici Arts) – muito bom com gravações que a BBC costumava fazer. Os lieder são antecedidos com rápidos comentários dela e de Gerald Moore – um dos maiores acompanhantes de piano da história – sobre eles.

São apresentações descontraídas e aproximam o público “leigo”. O repertório vai de Brahms, Schubert, Wolf, Mahler, Schumann, Verdi, Gluck, Menotti e, como não podia faltar, de Mozart e de Richard Strauss. Uma parte menor é a apresentação dela com a Ochestre National de l’ORTF, sob regência de Berislav Klobucar. Falam também que Elisabeth era impopular com seus pares musicais, o que nos faz imaginar que era antipática. Nas apresentações na BBC, parece o contrário.

Morreu com 90 anos. Como Leni Rieffenstahl, que morreu com 101, ficou marcada pelas ligações “estranhas” com o hitlerismo. As duas, em comum, eram belas e tremendamente talentosas.

Recomendações de Vier Letzte Lieder:
Renée Fleming, Houston Symphony Orchestra, Christoph Eschenbach (RCA)
Jessye Norman, Kurt Masur, Gewandhausorchester Leipzig (Philips)

Veja e ouça:
Elisabeth Schwarzkopf/ Im abendrot:




Jessye Norman/ Im abendrot – para comparar:

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