sábado, 27 de novembro de 2010

Retrato em branco e preto de Pedro Miranda

A pimenteira de Pedro
Li, certa vez, sobre um disco de uma cantora chamada Teresa Cristina apenas com composições de Paulinho da Viola. Meses depois aconteceu um show de Eduardo Gudin no Sesc-Vila Mariana em que Paulinho participava. Depois do show, alguns deles foram jantar no restaurante Walter Mancini, que fica na rua Avanhandava, em São Paulo. Convidado, lá fui eu. Sentei quase na frente de Paulinho. Num certo momento perguntei sobre o CD lançado pela Deck Discos. Ele, bom de conversa, sempre bem humorado, levantou as sombrancelhas, fez aquela pausa de “bem, o que vou falar?” e deu a entender que não tinha gostado com o olhar direcionado a uma moça bonita que estava sentada umas três ou quatro cadeiras à minha esquerda. Ela arregalou os olhos, guardando silêncio. Era a Teresa Cristina. Bem, aí foram só gargalhadas. Paulinho derramou-se em elogios. Como uma coisa leva a outra, quando assisti ao dvd que Teresa lançou com o grupo Semente – O Mundo É Meu Lugar – chamou-me a atenção a performance de uma cara que fazia um solo de pandeiro e cantava. Mas nem me dei ao trabalho de saber seu nome.

No começo de 2010, alertado por algumas referências elogiosas, inclusive a de Caetano Veloso, fui atrás de um disco de um certo Pedro Miranda. Chamava-se Pimenteira. Estava completado o círculo. Era ele o percussionista do show de Teresa Cristina.

É o samba negro? E o blues? A música é generosa, universal. Os universos se “entrelaçam” e resultam em belos “estranhamentos. A absorção da cultura africana por Pablo Picasso, a reinterpretação da linguagem do blues de Jimmy Page e Robert Plant na composição Since I’ve Been Lovin’ You, as gravações de Eric Clapton das composições de Robert Johnson, o samba “italiano” de Adoniran Barbosa, o jeitão “Brás” de Miriam Batucada, tudo faz parte dessa “estranha beleza”. Cada cultura traz um dado novo. Errou aquele jornalista da revista IstoÉ que, quando foi lançado o disco Insights, da Toshiko Akiyoshi–Lew Tabackin Big Band, em 1978, em sua imensa ignorância, querendo ser engraçadinho, disse que japoneses não deveriam fazer jazz – era uma coisa mais ou menos assim. O desinformado e preconceituoso jornalista nem devia conhecer o jazz, senão saberia que a bigband de Akiyoshi e do saxofonista e flautista Tabackin era considerada, disparado, a melhor, premiada por revistas especializadas de jazz e pela ‘Stero Review’. Desconhecia também que Akiyoshi tinha sido considerada a melhor arranjadora por cinco vezes e duas vezes como compositora e Insight tinha ficado em primeiro lugar nos melhores do ano pela revista Downbeat. Por isso, o samba pode ser negro e até javanês, diria Lima Barreto.

Pode ser um pouco moda se dizer das intertextualidades, mas é interessante esse cruzamento de informações e culturas. Numa matéria publicada em O Estado de S. Paulo, em dezembro de 2009, Pedro diz que em sua juventude ouvia só rock brasileiro e reggae. Paulinho da Viola, Cartola, ouvia se alguém estivesse ouvindo e ele estivesse por perto. A “revelação” acontece a partir do momento em que descobre que o samba era parte dele. Pedro vai tocar pandeiro e, certamente seu gosto pela batida pesada e “malemolente” do reggae estará incorporado. Do mesmo modo, seu jeito de interpretar o samba estará permeado pelas formas musicais de que gostava. Não é só por ser branco que seu samba terá uma “cara”.

A revitalização da Lapa carioca resultou em uma transformação de vários gêneros musicais brasileiros, principalmente, do samba e do choro. Teresa Cristina, assim como alguns que despontaram atuando nos bares da Lapa, estão renovando a música brasileira. São jovens e talentosos.

Além de Pedro Miranda, tem Marcos Sacramento, que fez o memorável Memorável Samba, álbum de 2004, que é um conjunto de pérolas do samba para nenhum “Moreira da Silva botar defeito“. Tem algo em comum entre os dois. Ambos têm vozes com registro um pouco mais agudo, diferente do de muitos sambistas negros. São vozes de brancos, assim como diferenciaríamos as vozes “negras” de Sarah Vaughan ou Ella Fitzgerald das “brancas” de Anita O’Day e June Christy. Eles são bons na escolha do repertório. São músicas de letras espirituosas tão características do samba “malandro”. No caso de Miranda, a mão de Cristina Buarque na pesquisa do repertório é evidente – o cantor credita a ela e a Paulão 7 Cordas nos agradecimentos.

Em 2002, com produção de Hermínio Bello de Carvalho, foi lançado o cd duplo O Samba É Minha Nobreza. Participavam dele Teresa Cristina, Paulão 7 Cordas, diretor musical do espetáculo e Cristina Buarque, que, sem muito aparecer, está em todas e é uma das responsáveis pelas “redescobertas” preciosas. Outro que participou deste projeto foi Pedro Miranda, cantando em várias faixas. Não é mero acaso que, nesse seu segundo disco solo, apresente tanta consistência,

O destaque em ‘Pimenteira’ são os arranjos, na maioria do violonista Luís Felipe de Lima. Ótimos, além da cozinha costumeira das cordas e das percussões, os sopros são o diferencial. As intervenções das flautas, dos trombones , dos clarones – prestem atenção no arranjo de Caso Encerrado – e dos saxofones são perfeitas. Em Meio-Tom tem até um órgão Hammond tocado por Itamar Assiere e um vocal fenomenal do Anjos da Lua. Outro “corpo estranho” é a inclusão do violino do franco-carioca Nicolas Krassik.

Se Pimenteira fosse apenas isso, já estava bom. Tem mais, no entanto. Há um repertório de músicas de compositores da nova geração, como Edu Krieger, Pedro Amorim, Moysés Marques e Maurício Carrilho, seus amigos da Lapa, e composições de consagrados como Nei Lopes, Elton Medeiros e Nelson Cavaquinho. A deste último tem letra de Alcides Lopes e estava inédita em disco. Chama-se Velhice. É um primor da rudeza com a figura feminina, como Mulher de Malandro, de Heitor dos Prazeres, ou Marido da Orgia, de Ciro de Souza. A letra: “Vejo você hoje em dia acabada/ Quem te viu, quem te vê,/ quando eras amada/ Hoje a velhice apoderou-se de você/ Eu não sinto saudade da/ Mocidade nem vivo a sofrer/ Assim diz você/ Assim diz você/ Vá te mirar no espelho e veja/ como estás velha/ Estás no último degrau da vida/ Não vou zombar de você/ Porque também vou pra lá/ Mais tarde a velhice de mim vai se apoderar”. É sempre divertido ouvir essas músicas em tempos tão politicamente corretos.

Veja e ouça Pedro Miranda e Teresa Cristina:



quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Thomas Quasthoff, o pequeno notável

Uma certa dose de obsessão acompanha aqueles que ficam à procura de interpretações da mesma peça por vários autores. Tenho isso pela Paixão Segundo São Mateus, as Seis Suites de Cello e o Cravo Bem Temperado (Bach). De Beethoven, por algumas sonatas para piano e as sinfonias e de Schubert, suas últimas sonatas para piano, toda obra de câmara e, principalmente, os lieder. Acontece o mesmo com a obra cantada de Gustav Mahler. São paixões antigas a Canção da Terra (Das lied von der erde), Kindertotenlieder, Rückert-Lieder e Des Knaben Wunderhorn.

Thomas Quasthoff
No início de 2000, vi uma gravação de Des Knaben Wunderhorn com regência de Claudio Abbado. Chamara-me a atenção Anne Sofie von Otter, bela cantora sueca. Para os lieder, sempre gostei do registro dos mezzo-sopranos e Anne era uma das minhas “preferidas do momento”. Não conhecia, porém, o barítono Thomas Quasthoff. Chamara-me a atenção alguém de nome alemão com traços não exatamente arianos. Bela voz. Baixos e barítonos são mais específicos que tenores e menos “populares”. A exceção era Dietrich Fischer-Dieskau, de quem tenho há muito tempo Winterreise, Die Schöne Mullerin e Schwanengesang, de Schubert, acompanhado pelo pianista Gerald Moore.

E agora, na semana passada, fuçando na Miles Discos, em Buenos Aires, no setor dos cantores líricos, encontrei o The Jazz Album: Watch What Happens, de Thomas Quasthoff. Dizem que curiosidade mata. Morro de curiosidade, o que deve ser um pouco diferente. Claro que comprei.

No jazz são poucos os barítonos. Descontando Paul Robeson, que não era exatamente um performer deste gênero, tivemos Billy Eckstine e Johnny Hartman. Não estou incluindo Joe Williams e Jimmy Rushing por razões mais ou menos óbvias. Mais recentemente a pianista e cantora Shirley Horn tinha produzido um CD de Jefferey Smith que, por sinal, tem a voz que lembra a de Quasthoff.

The Jazz Album é uma grata surpresa. Tem voz privilegiada e swing suficiente – vejam o vídeo indicado – para se defender no jazz. A produção é do trumpetista alemão Tll Brönner, que já andou passando por terras brasileiras e gravou um álbum com o nome ‘Rio’, meio bossa nova, meio Chet Baker, fraquinho, mas “ouvível”. Mas escolheu bem os músicos para este álbum: o pianista Alan Broadbent, grande acompanhante e arranjador, Nam Schwartz e a Deutsches Symphonie-Orchester Berlin. O repertório é aquele mesmo, sem surpresas. É uma coleção de standards – a exceção é You and I, de Stevie Wonder – que parece tão familiar como centenas de outros desse gênero. Nesse sentido, é um repertório “fácil”. A questão é a de se produzir um bom disco. Neste The Jazz Album… há um emocionante registro de Smile com bela orquestração da arranjadora Nam Schwartz, interpretação impecável de Hasthoff em My Funny Valentine e em What Are You Doing the Rest of Your Life, de Michel Legrand. Nesta última a mão de Schwartz pesa um pouco no excesso orquestral. O mesmo acontece com a última música do CD – Solitude, de Duke Ellington, mas nada que as estraguem. Note-se a diferença de concepção em Can’t We Be Friends, arranjada por alguém do jazz como Alan Broadbent. No geral, é um disco bem agradável e não tem “modernidades” tolas para atrair o público mais jovem como as dos “garotos” Michael Bublé e Jamie Cullum.

A onda de cantores líricos em se aventurarem por gêneros mais “populares” não é recente. Nem é preciso colocar o trio Pavarotti-Domingos-Carreras e, menos ainda, incluir interpretações de canções napolitanas, que até Enrico Caruso chegou a gravar. Limitando-se a alguns, vamos citar Jessye Norman, Elly Ameling, René Fleming, Kiri Te Kanawa e dizer que poucos não se arriscaram a explorar novos territórios comerciais. Anne Sofie von Otter não foi citada neste grupo por uma razão específica: como Quasthoff, não “empola” a voz. O que é bom e, de algum modo aproxima esses cantores dos normais. Às vezes é um pouco estranho que standards sejam cantados de modo “operístico”. Por questão de hábito, até as árias tiradas de uma ópera de verdade, a Porgy & Bess, de Gershwin, como Summertime, I Loves You, Porgy ou There’s a Boat Dat’s Leavin’ Soon for New York – que é a primeira faixa deste CD de Quasthoff e é uma apresentação de primeira de sua versatilidade e é cantada no “modo jazz” – parecem soar melhor se interpretadas “normalmente”.

Num cantor o que importa é a voz, mas estranhei um pouco o fato de nunca ver seu nome em registros ao vivo de óperas sendo tão bom baixo e barítono. A explicação veio ao “buscá-lo” na Internet: Quasthoff é uma das vítimas da talidomida, que fora receitada a sua mãe durante a gravidez. Tem pouco mais de 1,40 m de altura e seus braços não se desenvolveram normalmente, o que o impediu de ser aluno de piano na infância. Quanto mais ouço Quastoff mais me convenço de que se fosse cantor de jazz, estaria entre os melhores, tranquilamente. É fácil constatar que ele ama o jazz. The Jazz Album demonstra que ele é alguém familiarizado com esse gênero, ao contrário de alguns cantores ou cantoras líricas. Um (mal) exemplo é o álbum Haunted Heart, da mais que competente René Fleming que, mesmo acompanhada pelo pianista de jazz, Fred Hersch, frusta nossas melhores expectativas, principalmente após sua arrepiante interpretação de Summertime, de Gershwin, no Faenor Festival, no País de Gales.

Vejam e ouçam que balanço em Watch What Happens:


My Funny Valentine:



Comparem o modo de cantar Gute Nacht, do ciclo Winterreise, de Franz Schubert:

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Além d’O mundo das maçãs: Vijay Iyer

Na capa, trabalho de Anish Kapoor (Model for Memory)
O nome soa estranho. O que alguém, de pais indianos, pode estar fazendo no jazz. Muita coisa. Do mesmo modo que a japonesa nascida na Mandchúria, Toshiko Akiyoshi, renovou o formato big band nos anos 1970, ou o tcheco Miroslav Vitous, integrante-fundador do Weather Report, uma das bandas que “inventou” o jazz-rock, Iyer é um dos nomes responsáveis pela renovação da linguagem do jazz. Ou alguém imaginaria que um país chamado Quirquistão pudesse exportar um pianista de jazz? Pois o extremamente habilidoso e meio perdido nas facilidades da pirotecnia Eldar Djangirov é de lá.

Ao contrário de Eldar, Vijay Iyer (pronuncia-se “Vijei Aier”) tem mostrado uma evolução sólida e não se tornou vítima de suas habilidades. Tem conseguido produzir bons discos no formato trio e também em parceria com o saxofonista alto Rudresh Mahanthappa, de origem indiana também, italiano de nascimento e residente nos EUA. As raízes indianas, tanto de Rudresh como de Vijay, demonstram o quanto um estilo como o jazz não se esgota. Apresentaram-se no Festival Bridgestone de Música no Rio e em São Paulo há dois anos e deixaram boas impressões. Na votação anual dos melhores do ano, feita por críticos convidados do mundo inteiro, da revista ‘Downbeat’, os dois, coincidentemente, ficaram em primeiro lugar na classificação “Rising Stars” em seus respectivos instrumentos.

A trajetória do pianista é interessante. Fez matemática e física na Yale University e é Ph.D. em física pela Berkeley. Nos encartes e no que fala nos shows e entrevistas, observa-se algo pouco comum no mundo musical: uma atitude “não alienada” quanto à conjuntura mundial. Não é por mero acaso que a capa do último CD seja uma imagem de um trabalho de seu meio conterrâneo, o anglo-indiano Anish Kapoor. Assim, passa uma imagem de contemporaneidade tal como o som que produz. Seu álbum Reimagining, com uma originalíssima (re)interpretação de ‘Imagine’, de John Lennon, e ‘Tragicomic’, lançado pelo selo Sunnyside, além deste último – Historicity –, já pelos títulos, são uma forma de “engajamento” ao tempo em que vive. Não seria gratuito, outrossim, refletir um pouco sobre o que dá misturar água e óleo, ou melhor arte e política. O bom exemplo de sempre é o realismo socialista. Iyer porém, pelo que parece, não tem essa pretensão. É apenas uma forma de estar antenado ao mundo em que vive.

Iyer é um pianista “nervoso”, vigoroso, se usamos uma expressão menos abstrata. Lembra músicos reconhecidos como o “avant-garde” Andrew Hill e em muitas passagens, McCoy Tyner, pianista do universo modal.

O último CD de Vijay, lançado em 2009, pela ACT, foi considerado um dos melhores lançamentos do ano pela revista Jazz Times. Pela Downbeat, o melhor do ano, deixando para trás um figurões como Keith Jarrett e Joe Lovano. É merecido o reconhecimento. O CD representa a evolução dele como compositor e intérprete. Completando o trio estão seus parceiros costumeiros, com Stephan Crump no baixo e Marcus Gilmore na bateria. Além das composições próprias, constam músicas como Somewhere, de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, Smokestack de Andrew Hill, Dogon A.D., do saxofonista e flautista Julius Hemphill, ex-integrante do World Saxophone Quartet, Mystic Brew, de Ronnie Foster, e também , Big Brother, do músico “pop” Stevie Wonder.

Qualquer música, seja dele ou não, tem sua marca. Até em Somewhere, a única que pode ser considerada um standard. Um pouco cá um pouco lá reconhecemos o tema de Somewhere. As variações que enseja na música são uma demonstração de seu poder de improviso.

Sua antena direciona-se aos temas “pops” de M.I.A. (Mathangi Maya Arulpragasam), cujos pais são de Sri Lanka. Não conheço a original, mas pelo que conheço dessa autora cultuada pela crítica – vejam, tudo é questão de gosto e preferências – Iyer fez milagre, pois é uma das boas faixas do CD. Outros destaques são Helix, composição própria, Dogon e Mystic Brew. Trident: 2010, outra própria, é outra faixa muito boa e lembra muito, com a composição de Ronnie Foster, McCoy Tyner. Desconheço se a música foi inspirada num dos grandes álbuns do excepcional acompanhante ao piano de John Coltrane, Trident, que gravou com o baterista Elvin Jones e o baixista Ron Carter, mas que lembra bem, lembra.

sábado, 18 de setembro de 2010

Magda Tagliaferro, a mulher de cabelos verdes


Há muito tempo atrás fui assistir a um recital de piano, no Teatro Municipal, convencido pelo meu melhor amigo na época do ginásio – hoje, se não me engano, designa-se ensino fundamental –, que estudava no Conservatório do Brooklin, São Paulo, e gostava de música erudita. Nessa época em que mal completara quatorze anos, teimava em convencê-lo a ouvir rock, progressivo, para ser mais exato. Estava naquela fase de descoberta de Led Zeppelin, a banda inglesa Yes e o trio Emerson, Lake & Palmer. Em sua ireedutibilidade intelectual, dizia que aquilo não era música. Independente de achá-lo um tanto pedante – e ele, provavelmente me achando um “brucutu” cultural – credito a ele meus primeiros contatos com a música clássica e o gosto que fui tomando por esse gênero. O contrário não aconteceu. Por mais que tentasse convencê-lo das “qualidades” do rock, continuou com suas preferências.

Os “cabelos verdes” é referência a um filme de Joseph Losey
Pois então, voltando ao recital, meu amigo Domingos Darcie me empurrara para assistir à apresentação de Magda Tagliaferro – ou Magdalena para muitos. Sem ter me dado conta à época, fui um privilegiado ao ter a oportunidade de vê-la ao piano, em idade avançada, que seja dito. O destino faz coisa: fui um afortunado. Chegamos ao Municipal e sentamos onde nossas míseras mesadas permitiam. Naquele dia os deuses foram bondosos com a gente: ficamos no balcão superior, no lado esquerdo do palco, bem em cima do piano. Entrou uma senhora de vestido verde e, bem, não tinha os cabelos verdes como o título sugere. Seus cabelos cor de fogo em majestoso penteado e indumentária verde resultavam num conjunto, no mínimo, inusitado.

Sentados na primeira fileira, apoiados com os braços no peitoril, tínhamos uma visão privilegiada de Magda e o piano. Nossa visão era a do basto penteado e suas mãos percorrendo as teclas. Não vou lembrar do repertório. Recordo que o público a tratou com a reverência reservada às divas. Meu amigo, no entanto, bom pianista que não seguiu carreira, notou que ela esbarrava muito nas teclas. Eu não notava nada disso, mas ele ficava indicando as horas em que isso acontecia. Tagliaferro, nessa época, tinha perto de 90 anos. Não sei se isso poderia servir de justificativa se compararmos com as apresentações de Arthur Rubinstein e Wladimir Horowitz quase nonagenários.

O melhor argumento é a do crítico João Marcos Coelho, de O Estado de S. Paulo: mesmo errando era genial. Coelho observa que um Lang Lang, jovem revelação no piano, de ascendência chinesa, não erra uma nota, mas falta emoção, alma. É um bom argumento. Rubinstein dizia que era impossível não errar algumas notas durante um concerto. Para os que associam a beleza à perfeição devem esquecer das brilhantes interpretações das Suites de Cello, de Bach, por Pablo Casals e ouvir as de Mischa Maysky ou de Yo-Yo Ma. Nos anos 1970 fizeram um alarde enorme sobre a perícia e técnica do pianista russo Lazar Berman. Desapareceu. Garanto que muita gente nem sabe quem é. Resumo da ópera: não basta a técnica para ser um grande virtuose. E Magda provou isso. Grandes músicos fizeram parte de seu círculo e a adoravam.

Na ocasião do lançamento pelo selo Doremi de uma caixa com dois cds e um dvd com gravações do 3º Concerto para piano e orquestra, de Prokofiev, e em áudio, de algumas obras de Chopin, Mozart e também de seu amigo venezuelano Reynaldo Hahn, volta-se a falar de Tagliaferro na imprensa. O crítico Irineu Franco Perpetuo, na Folha de S. Paulo, diz que “financeiramente arruinada pelo segundo casamento, continuo se apresentando em público com idade avançada, quando as mãos já não obedeciam aos comandos de seu cérebro com a mesma presteza.” Deve ser. Quando a vi, beirava os 90 anos. Morreu com 93. Ela e Guiomar Novaes estão entre os maiores intérpretes de todos os tempos ao piano. O bom desses lançamentos é de que têm sido relembradas.

Saint-Säens - Concerto nº 5:



Republicação de texto postado pela primeira vez em 4/3/2010

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Don’t Smoke in Bed

Aparentemente, lang não fuma
A cruzada de José Serra contra fumar em locais fechados, transformada em lei, junto com a possibilidade de multa e cadeia por dirigir alcoolizado resultou em grandes mudanças em São Paulo. Isso muda a paisagem, com pessoas andando nas ruas com cigarros na mão, braços para fora dos carros com aqueles tocos brancos fumegantes, pequenas aglomerações na frente de prédios comerciais. Sem tomar partido e saindo do real e entrando um pouco na fantasia, que belas imagens o cigarro nos deu no cinema! Cenas inesquecíveis de Humphrey Bogart com o cigarro pendurado no canto da boca, belas mulheres segurando-o sensualmente suas piteiras e aqueles desenhos sinuosos que as cinzas construiam de encontro com a luz e fundos escuros. Era um “chiaroscuro” muito diferente das que vemos nas pinturas renascentistas de um Caravaggio ou de um Rembrandt. A fumaça é o elemento de contraste, por excelência, dos filmes “noir” dos anos 1950.

A cantora kd lang não está no meu panteão de cantoras, certamente. No entanto é autora de versões definitivas de algumas músicas, principalmente daquelas que foram cantadas por outras: comparações são um bom parâmetro de avaliação. Na minha opinião, não existe melhor versão de Don’t Smoke in Bed, um clássico das “torch songs”, composta por Willard Robison. A dramaticidade com o que ela canta é do tamanho da dor que a letra passa. Na hora em que canta “don’t look for me / I’ll get a hand / Remember darling / Don’t smoke in bed”, arrepia. Cometo a imprudência de dizer que sua versão é melhor do que a de Nina Simone. A letra é um primor do abandono simbolizado pelo anel de casamento deixado e pela advertência: “não fume na cama” (reproduzo a letra no fim do texto). Outras conhecidas são cantadas por gente do calibre de Julie London, Peggy Lee, e das “modernas” Holly Cole, Patti Smith e Carly Simon, de quem falo mais adiante.

Simon, vestida para matar
Todas as canções de Drag referem-se ao cigarro. É uma espécie de “disco-conceito”, como é também o pioneiro álbum Only the Lonely, de Frank Sinatra. A capa é uma grande sacada: é kd, meio andrógina, vestida com um um costume masculino em pose de quem segura um cigarro, mas sem ele.

Outra versão que, se não é definitiva, está entre as melhores – e olhe que existem centenas ou até milhares de registros dela –, é a de So in Love, contida no dvd e cd Red, Hot + Blue, gravado em prol das pesquisas para a cura da Aids. Com algum esforço, ainda é possível encontrar o dvd, que tem vários clássicos da música americana dirigidos por gente como Wim Wenders, Percy Adlon, Jim Jarmusch e Neil Jordan e interpretados por David Byrne, Aztec Camera, Sinead O’Connor, Debbie Harry, Tom Waits, U2 e Annie Lennox. Não é pouco. Outro cd de lang, Hymns of the 49th Parallel, contém apenas canções de seus conterrâneos canadenses Neil Young, Leonard Cohen, Jane Siberry e Joni Mitchell. A Case of You, de Mitchell, Helpless, de Young e Hallelujah, de Cohen, valem uma atenciosa audição.

Quase tão bom quanto o registro de kd lang de Don’t Smoke… é o de Carly Simon. Nessa onda que se torna maçante, que é a de se gravar álbuns com clássicos americanos – Rod Stewart parece ter esquecido que é um cantor pop e, pensando na grana, gravou vários cds após o sucesso de sua primeira investida no gênero –, uma das primeiras cantoras do universo pop a embarcar nessa ideia foi ela. Torch, gravado em 1981 pela Warner Bros Records, possui preciosidades como I’ll Be Around (Alec Wilder), de 1942, o clássico ellingtoniano, I Got It Bad and That Ain’t Good, de 1941, I Get Along without You Very Well (Hoagy Carmichael), de 1939, Spring Is Here (Rodgers & Hart), de 1938, e Body and Soul (Heyman, Sour, Eyton e Green), de 1930, além de músicas da década de 1950 como Pretty Strange (Jon Hendricks e Randy Weston) e Not a Day Goes By (Stephen Sondheim), da década de 1980. Numa roupagem que pode assustar os mais empedernidos fãs de jazz, com arranjos de Mike Manieri, que toca marimba em algumas faixas e Warren Bernhardt no piano elétrico e sintetizadores, mesmo assim, agrada aos ouvidos de bom gosto. Tudo bem, tem o sax alto chatinho de David Sanborn, mas, em contrapartida, tem o do brilhante Phil Woods. Torch, como como nos induz o título, é um disco de dor de cotovelo e de corno, como as músicas rodrigueanas – refiro-me a Lupicínio e não ao grande dramaturgo Nelson Rodrigues. Bem nesse espírito, a composição da própria, From the Heart, é uma peça que merece estar no repertório desse gênero. Amigão, se você não se emocionar com essa música, corra para o seu psiquiatra, pois você está arriscado a estar sofrendo de palidez afetiva.

Além de Torch, não sei se por motivos comerciais ou emocionais, gravou mais um álbum com conceito semelhante: Film Noir, em 1997, pela Arista. Pelo título já dá para desconfiar. O clima do disco remete à fatal Gilda – “nunca houve uma mulher como Gilda” – a Lauren Bacall, a Humphrey Bogart e seu indefectível – já que o título se refere a ele – cigarro, à cara “feia” de Robert Mitchum surgindo das trevas e aos heróis amargurados e atormentados do cinema “noir”, estilo que dominou os anos pós-Segunda Guerra. No CD estão presentes a música tema do filme Laura, protagonizado pela inesquecível Gene Tierney e dirigido por Otto Preminger, o clássico alemão desse período, Lili Marlene e I’m a Fool to Want You, música símbolo de “dores de amores” e que se encaixa bem à fase em que Frank Sinatra viveu a perda de Ava Gardner; esta música está em Where Are You?, que com Only the Lonely, são daqueles discos para ouvir e sentar na sarjeta ou recostar-se no poste e chorar convulsivamente.

Para quem se interessar, transcrevo a letra de Don’t Smoke in Bed:

I left a note on his dresser
And my old wedding ring
With these few goodbye words
How can I sing
Goodbye old sleepy head
I’m packing you in like I said


Take care of everything
I’m leaving my wedding ring
Don’t look for me
I’ll get a hand
Remember darling
Don’t smoke in bed


Don’t look for me
I’ll get a hand
Remember darling
Don’t smoke in bed


kd lang canta Don’t Smoke in Bed 




Carly Simon canta Don’t Smoke in Bed

O belo piano de Gogô

Uma ex-namorada, para ralhar de mim ou me diminuir, adorava dizer que o meu gosto era o “gosto dos outros”. Em vez de me importar, resolvi encarar sua “ironia” sob outra ótica: “Sim, me importo com o “gosto dos outros”.” Sou curioso. Se alguém me disser que Waldick Soriano é bom, se não o conhecesse, certamente iria atrás de algum disco dele para conferir. A curiosidade é uma das boas qualidades que a gente tem: é assim que se conhece o novo. Uma das boas coisas desse mundo é a possibilidade de se trocar experiências, de entrar em sinergia com os mais próximos e, assim, é difícil conceber que alguém que está ao seu lado fique competindo com você. Inveja e complexo de inferioridade são uma “merda” – se o Lula pode proferir essa palavra, por que não nós, simples humanos à mercê da “merda” política?

Aprendi muito com o meu amigo Zeca Leal e o admiro. Sempre lembro de suas bem humoradas tiradas, de sua admiração pelo jazz West Coast, por Dave Brubeck e de sua paixão por Frank Sinatra. Seu humor era impiedoso até consigo. Gostava de dizer que foi o maior comprador de discos de Sinatra: quando ainda bebia, cada vez que punha um disco na vitrola, riscava-o e ia até a loja e comprava outro igual. Vitrola era o que, hoje, é o tocador de cd. Consistia de uma base giratória onde se colocava os compactos simples ou duplos – quando tinha uma música em cada lado, por isso, lado A e lado B, era simples; nos duplos, eram duas músicas em cada lado – e os lps, abreviação de “long playing”. O som “estava” nos microssulcos dos bolachões pretos de doze polegadas. Era produzido pelas vibrações que eram captadas por uma agulha de diamante e, eletricamente, iam para um amplificador de som e, finalmente, para as caixas acústicas. Uma boa cápsula – que era a peça que em que se encaixava a agulha – custava mais que um bom aparelho de cd. A conservação dos discos era complicada. Além de sofrer desgaste natural pela fricção da agulha com o vinil, qualquer risco resultava em indesejáveis “pipocares” no som. Os chiados ficavam por conta da poeira que ia entranhando nos sulcos devido à eletrostática resultante do contato do diamante com a superfície do disco. Os saudosos dos lps defendem que o som analógico é melhor do que os produzidos por tocadores de cd ou mp3, em que os sons são “bits”. Há uma certa verdade nisso. Há uma sensação de melhor ambiência no som analógico – é mais redondo – enquanto o dos cds, depois de muitas horas de audição, causam uma fadiga sonora. Com as modas “retrô” que, vira e mexe, resgatam alguma coisa, voltaram a vender lps de vinil, só que a preço de ouro.

Como Zeca era da época dos lps, costumava vir a minha casa para gravar seus discos preferidos para poder ouvi-los sem os velhos chiados. Durante as sessões de gravação rolava muita conversa e muita informação nova, pelo menos para mim. A curiosidade me ensinou muito. Zeca era amigo de Dick Farney – fazia até sua declaração de imposto de renda –, Dick era amigo e parceiro de Gogô, apelido e nome artístico de Hilton Jorge Valente. Zeca foi aluno de piano de Gogô. Zeca sempre falava dele.

Muitos anos depois – e bota ano nisso –, na Folha de S. Paulo, na coluna em que anunciam alguns lançamentos de música, um título chamou-me a atenção: O Piano de Gogô. Logo vi que devia ser o tal amigo do Zeca. Saí à procura do disco para comprá-lo. É a velha história dos independentes. Onde achar? Por uma coincidência daquelas, Bruna Prado – boa cantora, guardem o seu nome –, filha de uma amiga, fora sua aluna na Unicamp. Foi assim que o disco chegou na minha mão. Em dois dias ouvi umas cinco vezes. Na primeira vez, não me impressionou muito. A cada audição gosto mais. Não é daqueles cds de fazer “cair o queixo”. Devemos sorvê-lo vagarosamente, prestando atenção em detalhes que se sobressaem a cada ouvida. Essa é a sua grande qualidade: a de levá-lo a descobrir cada detalhe que não foi notado antes.

A capa do CD
Os sidemen e as participações especiais de Alaíde Costa, o promissor violonista, seu ex-aluno na Unicamp, Alessandro Penezzi, e o consagrado Guinga, contribuem para a qualidade instrumental do álbum. É um belo time: Nailor Proveta, Leandro Braga, Zeca Assumpção no baixo e mais um tanto de gente boa. Proveta é mestre onde coloca a mão: toca clarinete, sax-alto e fez alguns arranjos. Que belo solo o de Gogô em Doce de Coco, de Jacob do Bandolim, e que estupenda é sua interpretação na última faixa do cd, Chegaste, composição sua. O duo de piano com Gogô e seu ex-aluno, Leandro Braga, é pura poesia, tanto quanto é o arranjo de Senhora das Campanelas, composição do mestre Guinga, com a riqueza de seu piano, o solo de clarineta baixo de Otinilo Pacheco e do oboé de Lazarov MB. Gogô é o arquiteto das harmonias e belas linhas melódicas.

Zeca, obrigado. Por causa de você conheci o Gogô. Valeu. E obrigado para quem fez com que esse maravilhoso cd me chegasse às mãos.

O CD pode ser encontrado nos seguintes sites:
Livraria Cultura: http://bit.ly/cAXyjk
CD Point: http://bit.ly/aJ7gIy

Algumas amostras do talento de Gogô:

Doce de Coco



Chegaste

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sobre Richard Strauss e saudades da Edgar Discos

Lembro que, por recomendação de alguém, conheci uma pequena loja de discos que ficava espremida entre a Cultura Inglesa e a delegacia do bairro. Na rua Lacerda Franco gastei boa parte da minha mesada em lps na Edgar Discos. Era uma dessas casas de bairro cuja frente resumia-se à janela do quarto da frente e uma entrada lateral que possuia um portão baixo de ferro. Quatro ou cinco degraus acima, passava-se pela porta e pelo quarto da frente e, logo depois, à direita, chegava-se a um cômodo que não devia ter mais que quatro por quatro metros, entulhado de discos novos e usados. O “filé” eram os de segunda mão, principalmente para alguém que recebia uma mesada “na conta”. Economizava no lanche e no cinema para poder comprá-los.

Era uma família estranha. O Edgar usava um óculos de armação pesada, preto, que ampliava seus olhos e sua roupa não denotava que tinha sido alfaiate antes de ter a loja: calças mal ajambradas, meio largas, que iam descendo e deixava à mostra sua cueca “samba-canção”, daquelas que, antigamente, eram de ilhoses – sem elástico na cintura – e, por vezes, revelavam o que hoje chamam de “cofrinho”. Quase sempre sua mãe estava sentada numa cadeira vestida com camisolas de malha suedine branca com estampas coloridas e chinelos com meias soquete, geralmente cinzas, de lã. Tinha os cabelos grisalhos bem crespos, sempre puxados para trás e presos. Conversava de vez em quando com os clientes. Tinha o rosto comprido e suas bochechas saltadas marcavam a região da boca, dando-lhe uma aparência meio canina, meio “guarda” do pedaço. Sua esposa era uma senhorinha pequena de lábios bem finos e boca característica de quem usava dentaduras mal ajustadas, voz esganiçada de sotaque indefinível e seu indefectível “Edegar”. Tinha uma filha também, que quase sempre estava na loja. Usava uns óculos meio fora da moda e, como devia ter hipermetropia, como seu pai, seus olhos ficavam ampliados através das lentes e parecia um pouco com aquela moça que trabalhava no programa humorístico ‘Chaves’ que, até hoje é exibido na emissora do senhor Silvio Santos.

Fora essa estranheza toda, no setor dos discos novos, Edgar sempre tinha as últimas novidades. O bom era que sempre recebia discos promocionais com um selo em hot stamping onde se lia “Produto Invendável”. Custavam quase sempre a metade de um novo. Como recebia poucos desses, a tática era passar pela loja com frequência, o que no meu caso, era umas três vezes por semana.

Os discos usados ficavam nas prateleiras inferiores, cuidadosamente separados por gêneros. Ia direto nos setores de jazz e de música clássica. Lá estavam as “joias”, aqueles discos importados “detestados”, avant-garde demais, atonais demais, que não batiam com o gosto “normal” e eram uma pechincha. Formei boa parte de minha discoteca no Edgar. Além dos avant-garde como o Art Ensemble of Chicago, Anthony Braxton e Cecil Taylor, garimpei meus primeiros Art Tatum. Até hoje é um dos meus pianistas preferidos.

Alimentou também minha discoteca de música clássica. Tinha uns poucos discos de Bela Bartók, Debussy, Stravinsky e Mahler, comprados na loja Bruno Blois. No Edgar, arriscava mais. Se a aposta fosse errada, não teria custado muito dinheiro. E a oferta era bem razoável. Nessa busca pelo “desconhecido” comprei um disco com canções de Mahler, cantadas por um barítono de quem não me lembro mais o nome. Foi uma revelação. Paixão à primeira vista. Desde então, adoro os lieder cantados em alemão, principalmente. A voz humana é fascinante.

Um outro disco que comprei lá e me marcou foi o Vier Letzte Lieder (As Quatro Últimas Canções’, de Richard Strausss, cantada pela espanhola Montserrat Caballé e regência de Alain Lombard, da gravadora francesa Erato. Foi um impacto. Não tornou-se a minha peça de cabeceira apenas porque dificilmente ouço música deitado na cama. O primeiro lied, Frühling (Primavera) é fascinante. Seu início é impactante. É tensa, de beleza dramática e, ao mesmo tempo, transmite uma sensação de paz crepuscular. Não é à toa que são as últimas peças completas compostas por Strauss. O compositor de Also Sprach Zarathustra deve ter ido para o céu depois desse “testamento”.

Pelo interesse pela música cantada descobri a Canção da Terra (Das lied von der Erde), de Mahler – que comprei usado no Edgar, com regência de Bruno Walter –, depois, descobri os lieder de Schubert, Schumann, Canteloube, Poulenc e Duparc. Descobri que mais atrás existiam as ‘Paixões’ de Bach, sua Missa em si menor, o Vespro della Beata Vergine e Orfeo, de Monteverdi, as canções de trevas de Charpentier. É um universo sem fim.

Por conta de um tanto de obsessividade, quando gosto de uma peça, procuro ouvir várias versões para poder compará-las. Tenho várias versões do Cravo Bem-Temperado, das Suites para Cello, de Bach, do Vespro della Beata Vergine, de Monteverdi, e de Vier Letzte Lieder, de Richard Strauss. E, assim conheci Elisabeth Schwarzkopf.

Veja e ouça Richard Strauss / Im abendrot com outra excepcional cantora, Renee Fleming:

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Uma gata chamada Chan Marshall

Nunca imaginei que uma música tão caracteristicamente “stoneana” pudesse receber uma interpretação tão diferente. Aposto que boa parte da humanidade deva ter ouvido alguma vez (I Can’t Get No) Satisfaction. Ela parece indissociável à voz de Mick Jagger, o vocalista dos Rolling Stones. Mas houve a versão igualmente “power” perpetrada pela voz e energia excepcionais de Otis Redding. Muito tempo depois, mais exatamente em 2000, surgiu uma versão que era tão diferente que, nem pelo refrão diríamos que era ‘Satisfaction’. Quem a entoava era uma voz melancólica, levemente rouca e anasalada, muito triste… e atraente. Quem era essa mulher? Cat Power? Nome estranho e enigmático, que podia, se visto sob uma ótica diferente, meio bobo também. O que nos fazia imaginar que era o nome de uma cantora, era o nome da banda de um componente apenas, como Durutti Column, cujo compositor e componente era Vinny Reilly. Belo nome, mas o que o anarquista Buenaventura Durruti, que comandou três mil homens no que ficou conhecida como Coluna Durruti (a banda de Reilly é grafada Durutti Column, com dois “t” e um “r”) que lutou contra Franco na Guerra Civil Espanhola tinha a ver com o tipo de música tão melancólica, tanto ou mais que a de Cat Power. Desfeito o enigma, o nome que se escondia atrás de Cat Power era uma moça chamada Chan Marshall.

Não é a primeira vez que Cat vem ao Brasil. Deve ser a terceira, o que nos faz imaginar que não seja tão desconhecida dos brasileiros; ou Chan deve ter gostado muito do Brasil. Não seria o primeiro astro a se maravilhar com o país. É bem conhecida a estada do australiano Nick Cave, que se casou com uma brasileira e morou durante alguns anos na Vila Madalena em São Paulo. Era figurinha fácil visto a circular num fusca pelas ruas paulistanas. O falecido Jim Capaldi, cofundador do Traffic, e o saxofonista que sempre toca nas apresentações dos Rolling Stones, Bobby Keys, apaixonaram-se por brasileiras e foram parar no Rio de Janeiro. Há alguns anos comentou-se que Chrissie Hynde iria mudar-se para São Paulo. Por onde andas, Chrissie?

Se essas vindas constantes de Chan são apenas coincidências, pelo menos, será um modo de ampliar seu número de admiradores. Sou fã muito antes dela aportar por essas terras. Foi amor à primeira vista, desde The Covers Records, em que a primeira faixa era a famosa música que cito no primeiro paragrafo. Os covers abrangiam estilos bem diferentes que, em seu modo de interpretá-los, faziam com que, de tão pessoais, tornassem-se suas composições. São de Lou Reed, Bob Dylan, ou conhecidos standards como Wild Is the Wind, de Dimitri Tiomkin e Ned Washington, que muitos devem conhecer cantada por outra “melancólica”, a maravilhosa Nina Simone. Muitos devem conhecer um clássico de 1959, Sea of Love, que deu título ao filme dirigido por Harold Becker e estrelado por Al Pacino e Ellen Barkin. Seu jeito personalíssimo de interpretar essas músicas, acompanhada por um piano simplório ou por um violão fazem de The Covers Records, um disco intimista, daquelas que nunca ouviríamos no meio de muita gente.

Cat Power não é um “blockbuster” como, digamos, Beyoncé, porque é para gostos mais específicos e requintados. Não deixam mentir os cineastas Wong Kar-Wai, que utiliza-se de The Greatest na trilha de My Blueberry Nights – ela faz uma ponta como atriz –, o sueco Lukas Moodysson em Mammoth – que não foi lançado ainda, mas foi exibido na última Mostra de Cinema, de Leon Cakoff – ou Pedro Almodovar em Abraços Partidos, com Werewolf. É um mérito ser incluído por Almodovar e Kar-Wai, mestres em escolher músicas para seus filmes.

No próximo texto, comentarei seu último lançamento, de 2008, e se chama Jukebox, que é também de covers, na maioria.

Veja e ouça:
Satisfaction:




Sea of Love:

sábado, 11 de setembro de 2010

Caixa alta, só Deus

O nome de kd lang – atualmente usam pontos, k.d. – é grafado sempre em caixa baixa (é a forma de que designers gráficos e editores se referem às minúsculas). Ela não é a primeira do universo musical a optar por essa forma. Seu predecessor mais famoso é eden ahbez, pseudônimo de George Alexander Aberle, autor de Nature Boy.

eden ahbez proibiu em contrato de
que seu nome fosse grafado em maíúsculas
eden foi o que se poderia chamar de proto-hippie, ou seja, era hippie antes que esse movimento surgisse. Gostava de vestir-se com batas e usava barba e cabelos longos que o fazia parecer com Jesus Cristo. Em 1947 conseguiu se aproximar do empresário de Nat “King” Cole querendo mostrar uma música para o cantor/pianista. Chamava-se Nature Boy. Bom, o resto é história: “King” Cole gravou e o single ficou por oito semanas em primeiro lugar nas paradas. Na esteira, Sarah Vaughan e Frank Sinatra a gravariam também. Ele não teve nenhum outro sucesso apesar de outras composições terem sido gravadas por Doris Day, pelo grupo vocal Ink Spots, Eartha Kitt e até pela roqueira Grace Slick. Hoje é conhecido por ser autor de uma música só. Dentre todas as excentricidades a mais conhecida foi a da imposição de que seu nome teria de ser grafado apenas em letras minúsculas; maiúsculas, só Deus. Durante muito tempo isso foi respeitado. Com o passar dos anos esqueceram dessa “obrigatoriedade” e seu nome hoje é grafado com maiúsculas e minúsculas.

Além de “King” Cole
A gravação de “King” Cole é “unforgettable”. Revolucionário pianista e inventor do formato trio piano, guitarra e bateria, sem o contrabaixo, é mais conhecido pelo público como cantor. Com uma voz aveludada emplacou sucessos como Mona Lisa, Unforgettable, Blue Gardenia e When I Fall in Love, sempre acompanhado de orquestras, com arranjos de Frank DeVol, Pete Rugolo, Billy May e Nelson Riddle.

Outras gravações merecem ser conhecidas. Das vozes masculinas, dentre as que conheço, a minha preferida atualmente – a gente vai mudando de gosto, não? – é a de Kurt Elling, considerado o melhor cantor da atualidade. Outro cantor de voz grave e pouco conhecido, pelo menos no Brasil, tem uma versão impecável; é a de Jefferey Smith, acompanhado pelo piano estupendo de Shirley Horn. Dono de uma voz de contornos dramáticos, quase operístico, dá um tom melancólico e ao mesmo tempo grandioso. Belíssimo. Outro cantor de voz abaritonada, Johnny Hartman (lembram-se do filme As pontes de Madison, de Clint Eastwood; ele está lá), cujo álbum John Coltrane and Johnny Hartman, de 1963, é um dos clássicos do repertório jazzístico, tem duas gravações muito parecidas meio suingadas… chatinhas. Melhor ouvi-lo cantar Wave, do nosso querido Tom, acompanhado pela flauta de Frank Wess ou, preciosidade das preciosidades, Charade, tema de Henri Mancini para o filme de mesmo nome, protagonizado por Audrey Hepburn e Cary Grant. Das mais recentes, o jovem cantor da gravadora Concord, Peter Cincotti manda bem numa versão maravilhosa em que toca no piano o tema de The Fool on the Hill, de Lennon & McCartney e sobre ele, canta Nature Boy. Depois de dois bons cds, talvez por motivos comerciais, Cincotti parece ter perdido o rumo e bandeado para um repertório mais “popular”. Uma pena. Está ameaçado de fazer o mesmo caminho de Harry Connick, Jr.

Dentre as mulheres, uma muito boa é a de Karrin Allyson. Excelente cantora, com repertório eclético em que destacam-se gravações de músicas brasileiras e francesas cantadas em suas línguas de origem – com muita classe –, é intérprete de primeira. É bem melhor que a de Ella Fitzgerald e Joe Pass: gênios também dão suas escorregadas de vez em quando.

Sem patriotada, o Nature Boy, de Caetano Veloso está entre as melhores de todos os tempos. Ele é estupendo cantando músicas em inglês. Vide seu Lady Madonna, Help e For No One, todas de Lennon & McCartney. A curiosidade é a versão de Vinícuis de Moraes, acompanhado do violão preciso de Toquinho. Reproduzo a fala de Vinícius antes de cantá-la:
V: Eu quero fazer uma canção que sou vidrado nela. Eu estava em Los Angeles nessa ocasião, quando eu vi ela nascer, sabe?
T: Qual é?
V: É uma canção que se chama Nature Boy. Ah, você já…
T: Ah, claro. A gente cantou em Mar del Plata.

Como o texto está ficando longo, no próximo post comento sobre algumas versões instrumentais.

Para quem quiser conhecer a figura de eden ahbez: http://bit.ly/az3K6J

Para ver Cole interpretando Nature Boy (trio):



Relação dos álbuns:
Nat “King” Cole – Nat “King” Cole (Capitol 1992 – 4 CDs)
Sarah Vaughan – Nature Boy (Golden Stars 2002 – 2 CDs)
Fran Sinatra – The Best of The Columbia Years 1943 – 1952 (Sony 1995 – 4 cds)
Karrin Allyson – I Didn’t Know About You (Concord 1993)
Kurt Elling – Festival International de Jazz Montreal (DVD)
Jeffery Smith – Ramona (Gitanes/Verve 1995)
Johnny Hartman – The Tokyo Albums ( Gambit 1972) / For Trane (Blue Note 1973)
Ella Fitzgerald & Joe Pass – Fitzgerald & Pass… Again (Pablo 1976)
Peter Cincotti – Peter Cincotti (Concord 2003)

Sites:
Nat “King” Cole: http://bit.ly/FHwtp (orquestra)
Peter Cincotti cantando Sway (para conhecer, pois não existe o Nature Boy em vídeo): http://bit.ly/ZXnQz
Kurt Elling: http://bit.ly/xrLwy (muito bom)
John Hassell (trumpetista meio avantgarde; vrsão bem interessante): http://bit.ly/9j6xCr

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Colecionando músicas desde os 12 anos

Meu interessse por música vem de longe. Lembro que quando tinha uns 12 anos, meu pai resolvera dar um tanto em dinheiro para cada um dos filhos para não ter o trabalho de ficar escolhendo um presente de Natal. Gastei tudo em disco: cinco compactos simples. Acho que a maior parte dos leitores nem deve saber o que é um compacto simples ou um compacto duplo. Como os lps – discos de vinil, que estão voltando à moda – eram muito caros, esses disquinhos de vinil com duas músicas – uma de cada lado, por isso até hoje se fala em “lado A” e “lado “B” – eram a opção para os menos abonados.

Na adolescência a gente vai arrumando “turminhas”, uma para o futebol, outra para sair e outra para ouvir música. Nessa época, começo da década de 1970 – daí, quem quiser saber quantos anos tenho, já pode imaginar – o bacana era ouvir Led Zeppelin. Meu primeiro lp foi o terceiro deles. Botava Immigrant Song, a primeira faixa para arregaçar as caixas da velha vitrola Garrard de meus pais. Além do Led Zeppelin, nossa turma estava descobrindo um novo tipo de música que surgia, o chamado rock progressivo (Yes, Gentle Giant, Emerson, Lake & Palmer), que para nós, metidos a besta, era um avanço em relação ao rock, muito primário para as nossas inteligências. Ninguém é perfeito, muito menos um adolescente.

Bom, nem é preciso dizer que gastava toda a minha mesada comprando discos… e livros: Hemingway, Fitzgerald, e os latinos Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Alejo Carpentier e Juan Rulfo. Lia uns dois por semana. O rock progressivo perdia um pouco de graça e também fui mudando de turma. Uma amiga do cursinho emprestou-me uns lps do Weather Report e do Soft Machine. Até hoje Robert Wyatt, fundador do Soft, é um dos meus ídolos. O jazz-rock foi a porta para a minha curiosidade de conhecer outros gêneros musicais, como o jazz, MPB e a música clássica. Descobri Duke Ellington, Charles Mingus, Debussy, Stravinsky e, principalmente, Miles Davis. Os primeiros que conheci eram da fase elétrica – Bitches Brew, Agharta e Get Up With It –, depois fui comprando os mais antigos. Cheguei a ter, só dele, uns 60 lps, fatia significativa de um total de 4.500 lps que cheguei a ter. Com o advento do CD, fui vendendo ou dando-os para os amigos e hoje devo ter uns 300 a 400. Só de Miles Davis tenho 80 CDs. Quando me encanto por um artista ou uma obra, como todo contumaz colecionador, estou sempre atento a um novo lançamento. Do Cravo Bem-Temperado, de Bach, tenho cinco interpretações (desde a primeira gravação integral do Cravo, por Edwin Fischer, em 1934, até os mais recentes como os de Sviatoslav Richter, Glenn Gould, András Schiff e, pouco menos, da cravista Wanda Landowska

Quando o CD foi lançado – é, tudo muda rapidamente – fiquei pensando no destino que meus “bolachões” teriam. Aos poucos fui substituindo-os por esses míseros disquinhos prateados que possuiam a vantagem de não reproduzir os chiados causados pela estática e pelos riscos. Uma capa de lp é uma capa de lp, a do CD é uma titica de 12 x 13 cm. Mesmo achando isso, minha coleção de CDs, hoje, ultrapassa em muito o que tive de lps. Um pouco de estatística que revela meus gostos: 45% jazz, 12% clássicos, 28% pop/rock e 15% MPB.

Quero inventar uma casa que pode ser ampliada modularmente. Sempre estou projetando um novo armário ou uma nova estante. Tenho livros e cds até no banheiro. Pior: junta uma poeira! E até hoje não consegui arrumar alguém que ousasse limpá-los. De ano em ano tento dar uma geral. Bom, além dos CDs tenho uns 2 mil dvds, sendo mais da metade, filmes em que estão incluídos quase tudo de Antonioni, Bergman, Fellini, Kurosawa, Welles e Ozu, meus preferidos.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Dalva, Herivelto e Keith Jarrett

Dalva e Herivelto
Em 1987, Marilia Pêra estrelou a peça A Estrela Dalva, onde, além de representar, cantava. A tumultuada relação da cantora Dalva de Oliveira com o compositor Herivelto Martins, conhecida de todos os fãs da era do rádio foi apresentada pela primeira vez no teatro e agora, em janeiro de 2010, na televisão na minissérie Dalva e Herivelto, com roteiro de Maria Adelaide Amaral. O gosto da escritora por recriar a partir de fatos reais da cena brasileira tem tornado conhecidas figuras importantes da nossa história, abrangendo de políticos a artistas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfatti e Juscelino Kubitschek, apenas para citar uns poucos. Sem “nivelar por baixo”, Maria Adelaide “invade” os lares através da televisão e dissemina cultura sem o ranço do didatismo “realista-socialista” de alguns escritores.

A história da cantora do melhor Olhos Verdes (Vicente Paiva) e de sua relação tempestuosa com o compositor e intérprete Herivelto Martins serviu de inspiração para algumas obras definitivas do cancioneiro brasileiro. Que bela “lavação de roupa suja” é Atiraste uma Pedra: “Atiraste uma pedra com as mãos que essa boca/ Tantas vezes beijou/ Quebraste um telhado/ Que nas noites de frio te servia de abrigo/ Perdeste um amigo que os teus erros não viu/ E teu pranto enxugou// Mas acima de tudo, atiraste uma pedra/ Turvando esta água/ Esta água que um dia, por estranha ironia/ Tua sede matou/ Atiraste uma pedra no peito de quem/ Só te fez tanto bem”. Dores da perda, do desejo não consumado serviram de mote para centenas de músicas. Como “último desejo”, Noel Rosa, debilitado pela tuberculose, pede ao amigo que entregue a letra de Último Desejo à jovem dançarina de cabaré, objeto de sua paixão.

O autor de Ave Maria no Morro e Rosa transformaram suas dores em canções. Episódios marcantes são poderosos elementos inspiradores. Noel e Herivelto tinham o recurso da palavra. E para compositores e músicos que são apenas instrumentistas? Até onde esses acontecimentos podem influir em suas performances? Esta é uma pergunta que pode ser feita ao pianista Keith Jarrett.

Keith Jarrett
Keith, descontando suas idiossincrasias como recusar-se a tocar num piano que julgou “desafinado”, um Steinway, do Teatro Cultura Artística, que tinha sido levado ao Teatro Anhembi (SP), onde estava programada a apresentação, merecidamente está no “hall of fame” do século XX e, possivelmente, terá seu lugar no do século XXI. Jarrett é um músico ousado: além do jazz, tem vários álbuns em que toca Bach, Shostakovich e Handel. Com a concorrência de gênios como Glenn Gould, Sviatoslav Richter, Gustav Leonhardt e Wanda Landowska, sem querer comparar com esses grandes virtuoses, foi corajoso em botar a “cara pra bater”. E tocando, além do piano, o cravo.

Afora seus incontáveis discos em que gravou standards com seu trio – Gary Peacock no baixo e Jack DeJohnette na bateria –, todos de qualidade ímpar, Jarrett ficou conhecido por tocar sozinho peças que são improvisadas na hora, a partir do “nada”. Seu primeiro disco assim concebido foi o The Köln Concert, álbum duplo lançado em 1975. Foi o disco mais vendido de todos os tempos na categoria jazz. Causou sensação esse “modo” de Keith sentar-se ao piano, concentrar-se, e começar a tocar, produzindo sons sem temas pré-concebidos. O início do concerto de Colônia é de chapar. Até hoje, impressiona. Depois desse disco, foi ficando mais “ambicioso” e gravou um álbum triplo e, anos depois, gravou o Sun-Bear Concerts, vendido numa caixa com 10 lps. Cansou um pouco: parecia a exploração da mesma fórmula que deu certo. Olhando agora, descontando uma certa “arrogância”, e vendo que continua a produzir incessantemente, vemos que ele é genial mesmo e, fim de papo.

Sua última empreitada nos solos de improviso é um álbum triplo que saiu no meio de 2009. Chama-se Paris/London – Testament, lançado pela mesma ECM Records. Depois de Köln Concert tudo virou anticlímax, porque era tão bom que seria difícil imaginar que faria algo melhor nesse sentido. Testament chega perto. É natural que, com o passar do tempo, as pessoas se aprimorem em seus labores: “practice makes perfect”. Köln Concert foi o princípio. Jarrett sofisticou-se e seu “repertório de improvisos” ampliou-se.

A referência ao caso dos desencontros amorosos de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins não é por acaso. Jarrett, dias antes de um dos concertos, separou-se da mulher. Até que ponto esse episódio pode ter influenciado no resultado dessas apresentações?

Deve ter havido alguma influência sim. Independente das circunstâncias, ser abandonado pela esposa Rose Anne, depois de uma união de trinta anos, deve acarretar num estresse respeitável. Ao contrário dos solos dos anos 1970 e 80, em que os improvisos eram uma “espécie de viagens épicas pelo desconhecido”, segundo palavras do próprio Jarrett, este Testament e o concerto que deu no Carnegie Hall, em 2006, apresentam peças mais curtas nas quais desenvolve temas curtos e bem diferentes entre si. Deixam de ser momentos que se encadeiam em torrentes e tornam-se experimentos que “viajam” por momentos bem diversos e de andamentos em que delineiam-se as influências do bop, da música erudita, do “stride piano”, do gospel e do blues.

A primeira apresentação, que aconteceu na Salle Pleyel, em 26 de novembro de 2008, começa como se já estivesse iniciado. O primeiro número não parece um “começo”. Em Paris, seu piano é mais experimental, muitas vezes, quase atonal, como um exercício estilístico de técnica. Em vários trechos, em cima de ostinatos na mão esquerda, desenvolve os improvisos com a mão direita. Um dos pontos altos é a Parte III, um “stream” nas nas teclas dos graves e nos tons médios, dramática e melódica. Jarrett é um mestre que ouviu bastante os românticos. A Parte VII é um outro exemplo de seu talento melódico.

A segunda sessão aconteceu em 1º de dezembro em Londres. Antes da apresentação, Jarrett esteve perto de ter um colapso nervoso. Sentia-se extremamente vulnerável. Era a primeira vez em que ia tocar após saber que sua mulher estava se separando dele. Era época de natal e o colorido das ruas e o tráfego louco não se encaixavam com seu estado de melancolia; e, também, estava exausto depois da apresentação em Paris. Talvez por isso, sua apresentação em Londres foi mais “intensa”. A Parte I desse concerto inicia-se grave, dramática. A música é climática e melancólica. A Parte II é uma quebra desse “mood”. O som é nervoso, sincopado. A Parte IV é um dos momentos altos: impressionista, cheia de contrastes, que se acentuam com trinados nas notas agudas, enquanto a mão esquerda marca a música. Num certo trecho lembra a Catedral Submersa, de Debussy. A Parte V é um demonstrativo da capacidade de Keith em desenvolver um tema em longas evoluções que se assemelham a uma “passacaglia”, literalmente, com os dedos que passeiam em alternâncias quase dissonantes pelo teclado do piano. Na Parte VIII ele externa sua veia lírica. Emociona. Meio como uma forma de não embarcar na dor, alterna motivos mais melodiosos com temas em que evidencia-se sua habilidade. Com que maestria Jarrett camufla a “dor que deveras sente”. Em seus exercícios estilísticos a música parece ter saído de uma partitura de Messiaen ou de Bartók. E, por aí vai. Em alternâncias de climas Jarrett preenche o sentimento de vazio que causou a separação.

Ouçam a primeira parte do clássico The Köln Concert:





Ouçam um trecho do CD Testament (Paris, Part VII):


A música circular do Rabo de Lagartixa

Quando menos esperamos, encontramos na próxima esquina algo surpreendente. É o caso de O Papagaio do Moleque do combo Rabo de Lagartixa. O CD pode ter sido lançado em 2009, mas podemos tranquilamente classificá-lo como uma das boas novidades para o ano 10.

Formado por Daniela Spielmann no sax soprano, sax tenor e flauta, Alessandro Valente nos cavaquinhos, Marcello Gonçalves no violão de 7 cordas, Alexandre Brasil no contrabaixo e Beto Cazes na percussão, o Rabo… faz um som que renova o choro. Não são apenas exímios instrumentistas. Os arranjos são primorosos. Inventivos, é a linguagem do choro tradicional que passa por uma geração que absorveu influências de outros gêneros musicais.

Da mesma forma que o alemão Johannes Brahms, no século XIX, inspirou-se na regionalidade de seus “vizinhos” para compor suas Danças Húngaras e Béla Bartók, no século XX, este, húngaro de fato, serviram-se de manifestações musicais locais, o brasileiro Heitor Villa-Lobos valeu-se do folclore brasileiro para compor peças de música erudita. Músicos maiores da música popular não se cansam de incensar a sua importância para a afirmação de nossa identidade. É vital a contribuição de nosso Villa para a qualidade de algumas obras de compositores mais sofisticados como Antonio Carlos Jobim e Egberto Gismonti.

Contribuem para a disseminação da obra de Villa-Lobos para o mundo as gravações de sua obra pianística por Cristina Ortiz e Nelson Freire e as apresentações e registros fonográficos da Osesp para o selo sueco Bis.

O fato é que Villa-Lobos nunca deixou de ser “popular”. Sendo “erudito”, procurou disseminar a música por meio de programas como o dos cantos orfeônicos à época do governo populista de Getúlio Vargas. Independente dos nostálgicos de Vargas ou de seus críticos, ele não deve ter dado muita importância às possíveis injunções políticas. Circulou com desenvoltura entre sambistas e chorões, de quem era amigo. Subverteu as classificações do erudito x popular, como George Gershwin nos EUA. De maneiras diferentes, sim. As pesquisas de Villa-Lobos sobre a música regional serviram de base às suas criações. O dado interessante da sua obra é de como ele tornou o “popular” em “erudito” e de como “popularizaram” o “erudito” Villa. O movimento circular ao qual me refiro é essa “volta”: apropriando-se da música regional brasileira, constrói peças eruditas e estas, por sua vez, influenciam a música popular. O ciclo se completa assim como a cobra morde seu próprio rabo. Ou a lagartixa, que ao perdê-lo, o reconstrói.

Como nada nasce por geração espontânea, Rabo de Lagartixa demonstra que é fruto de muito tocarem juntos. Não é uma reunião acidental. No álbum ‘O Papagaio do Moleque’ os arranjos são mais ou menos divididos entre Daniela, o cavaquinista Alessandro Valente e o violonista Marcello Gonçalves. Cabe ao baixista Alexandre Brasil o arranjo da música-título e ao produtor Paulo Aragão a participação em Poema Singelo e Ondulando. Os destaques, na minha opinião, são Tristorosa, composição de 1910, uma “valsa triste’, e Canto Lírico, terceiro movimento do Quarteto de Cordas nº 1.

A faixa que abre o cd é Bachianas nº 1. O cavaquinho parece anunciar o Carnaval. Engano. Apenas a primeira parte das Bachianas foi usada: a Introdução (Embolada). O arranjo é o “carnaval” particular do Rabo. A base é “pesada” e impactante. Lembra um pouco Bye Bye Brasil, de Chico Buarque. Parece uma viagem por diferentes sons. Ao início bem ritmado que acompanha a abertura do som do cavaquinho, entra o belo solo de sax tenor de Daniela. O arranjo da saxofonista é brilhante. O arco do contrabaixo é passageiro e significativo. Essa primeira música anuncia um Villa-Lobos cheio de belezas. Pena que dure pouco mais que quarenta minutos.

Veja e ouça:

Toninho Horta, um talento pouco reconhecido?

Toninho nas alturas
Talvez por uma timidez atávica, Toninho Horta não tem o seu talento reconhecido no Brasil. Não é o único. O peso do marketing das gravadoras pesa bem. De vez em quando somos colhidos por avalanches como a do fenômeno Michael Jackson. O mercado tem essa característica blitzkrieg de atuar e nos fazer engolir qualquer coisa. No lançamento do álbum Thriller fomos literalmente “invadidos” pelas rádios, mtv’s da vida, Fantástico e outros órgãos de comunicação. Essas “invasões” são autoritárias e afetam o senso crítico das pessoas.

Nos anos 1960 aconteceu o fenômeno Beatles com os britânicos invadindo os EUA. Os marquetólogos não eram tão sofisticados como agora, mas é certo que havia uma estratégia por trás disso. Os Beatles acabaram e são cultuados até agora e a “marca” é vendida na forma de edições remasterizadas de todos os lps em mono e em estéreo, em adaptações para espetáculos como o que é apresentado pelo Cirque du Soleil, em gadgets e até em jogos para o Playstation e o X-Box, como o The Beatles Rock Band, que é um kit com bateria, microfone e uma réplica do baixo Rickenbaker de Paul McCartney. Os talentos reais estão acima do marketing. Os Beatles é uma banda para várias gerações. Sei de meninos de 10/12 anos que sabem cantá-los de cor, o que, até hoje, não consigo. Vejo crianças de todas as idades maravilharem-se vendo o desenho animado Yellow Submarine. Isso é prova de que, com ou sem marketing, continuam geniais e contemporâneos. Não é possível prever o tempo que vai durar o “fenômeno Michael Jackson”. O peso do mercado fez, pelo menos, uma vítima: ele, Michael.

Pode ser audácia demais se dizer que o talento está acima das armadilhas mercadológicas. Mesmo num lugar como o Brasil, ele impõe uma quantidade absurda de grupos sertanejos, de axé, de cantoras-dançarinas belas, de belo corpo e vozes menos, numa estratégia que só emburrece. Músicos com o perfil de Toninho Horta acabam sendo tragados pela indústria cultural rasteira, mas isso não acontece apenas no Brasil. Mas, a arte, como diz o artista plástico Boi (José Carlos Ferreira), “é um verbo auxiliar; presta-se a quem dela precisa.” Às pessoas que possuem a capacidade de discernimento para fruirem da arte de boa qualidade cabe propagar seus conhecimentos. E não são poucas. Se Toninho não é tão conhecido como Claudia Leite, paciência. Não é por isso que deixa de ser bom. A lógica do mercado brasileiro é tão cruel que não lançam discos de Egberto Gismonti há anos. Lançou um cd duplo chamado Saudações e, até onde sei, foi comentado apenas uma vez, merecendo página inteira em matéria de João Marcos Coelho, no jornal O Estado de S. Paulo. Quem quiser o disco, encomende em sites como a Amazon. Quase não se fala do músico de maior projeção internacional, atualmente, e não se falará muito de Toninho Horta nem de João Rabello, grande violonista, filho de Paulinho da Viola, sobrinho de Raphael Rabello e neto de César Faria. Contraditoriamente, falam bastante de Hamilton de Hollanda, de Yamandú Costa, André Mehmari e de Benjamin Taubkin. São bons intérpretes e fazem parte da seara da vida inteligente. Mas tem muito mais gente.

Minha amiga Maria Tereza disse que Toninho Horta está gravando um CD com participações de Ivete Sangalo, Djavan, Ivan Lins, Frejat, Beto Guedes, Erasmo Carlos e Sergio Mendes. Vamos esperar o lançamento do cd torcendo para que não tenha ficado “popularesco” e que fique mais popular sem perder suas melhores qualidades.

Uma das belas composições de TH é Vento. Achei um vídeo. Vejam também o “TH jazzístico” em Stella by Starlight, com Gary Peacock e Jack DeJohnette e participação especial de Nivaldo Ornellas.



Alguém para se ouvir: Stacey Kent e Roberta Gambarini

Gambarini e Roy Hargrove, no Rio
Cantoras surgem em pencas, ao contrário de cantores. Todos os dias aparece uma nova cantora na música brasileira. CéU, Ana Canãs, nomes há pouco circunscritos aos frequentadores de bares e pequenas salas de shows já estão no segundo cd. Somando as mais e as menos conhecidas na mídia, podemos, facilmente, exceder o número de dedos das mãos e dos pés. E haja ouvido e curiosidade para acompanhar. O mesmo se pode dizer das cantoras não brasileiras: para cada Amy Winehouse surgem centenas de nomes dos quais nem tínhamos alguma referência um mês atrás.

Num universo menor, o do jazz, muitas cantoras têm surgido, e quase sempre interpretando velhos standards consagrados pelas vozes negras de Billie Holiday, Sarah Vaughan e Carmen McRae, e brancas, de Anita O’Day, June Christy e Chris Connor. A persistência dessas músicas no imaginário auditivo é algo interessante. Cada um desses clássicos permite “reinvenções” surpreendente. Basta ouvir uma das mais conhecidas: Summertime (DuBose Heyward/G. Gershwin) na voz de Janis Joplin, cantora mais associada ao universo da música popular. Nos últimos anos – falo de um amplo período –, pois as intérpretes sobre quem escrevo não são exatamente noviças, tampouco “macacas velhas”. Nesse espectro em que surgiram Jane Monheit, bem conhecida dos brasileiros – já gravou o Ivan Lins –, Tierney Sutton, cantoras dos mais diversos lugares do planeta, como a brasileira Luciana Souza, a chilena Claudia Acuña e a excelente Jacintha, nascida em Cingapura, vale destacar Stacey Kent e Roberta Gambarini. Elas possuem um diferencial que as destacam das demais. Jacintha, Sutton e Monheit são afinadíssimas, mas parece que falta alguma coisa: perfeitas e tão pouco ousadas! Tinham de tomar um ácido, como Janis Joplin. E ousar não significa que devam “viajar” em scats: nem todo mundo tem a classe de uma Betty Carter ou de Ella. Maus scats apenas prestam um desserviço ao jazz.

Stacey Kent, com pouco menos de dez anos de carreira, se diferencia por algumas especificidades. Primeiro: tem aquela voz que, pejorativamente, comparam com a de Pato Donald. Na música pop é fácil de lembrar de algumas com essa característica: além de Cindy Lauper, a mais conhecida é Macy Gray e nem por isso são ruins. A de Kent não é tão “Pato Donald”, mas seu registro nos faz lembrar da saudosa e excepcional Blossom Dearie, grande pianista e intérprete de personalidade especial. Na sua quase dezena de CDs lançados, Kent carimba sua marca pessoal em interpretações inesquecíveis em velhos clássicos e em composições mais recentes.

No seu disco de estréia, Close Your Eyes já surpreende. More than You Know, a primeira faixa é a melhor amostra de sua qualidade como intérprete. Acompanhada apenas pela guitarra de Colin Oxley, os primeiros versos, “Wether you are here or yonder / Wether you are false or true / Wether you remain or wonder. / I’m growing fonder of you / Even tough your friends forsake you / Even though you don’t succeed / Wouldn’t be glad to take you / Give you the break you need…” … aí entra o refrão “More than you know, more than you know, / Man of my heart, I love you so / Lately I find you’re on my mind / more than you know.” A partir desse momento estamos apaixonados por Stacey e sua voz penetrará indelével e imperceptivelmente em nossas mentes. Seu segundo cd, Dreamsville é uma coleção de baladas, clássicos de Rodgers & Hart, dos mais “novos” Henry Mancini e Johnny Mandel, interpretadas com os mesmos acompanhantes de seu primeiro cd, um quinteto liderado por seu marido, o saxofonista Jim Tomlinson. O destaque são a guitarra de Oxley e algumas intervenções de Tomlinson tocando flauta e clarineta, instrumentos nem tão usuais no jazz. A faixa mais bela é Hushabye Mountain, de Richard e Robert Sherman, um standard “tardio” da década de 1960.

O segundo ponto que a distingue é de como os anos “formativos” na Inglaterra influenciarão em sua futura carreira. Nascida Americana, foi estudar literatura comparada na Europa, fixou residência na Inglaterra, estudou por um ano na Guildhall School of Music e casou-se com um músico. Esses “acontecimentos” estão presentes no conceito de seu mais recente cd: Breakfast on the Morning Tram. Quatro de suas composições têm letras do consagrado escritor Kazuo Ishiguro: a música título, The Ice Hotel, I Wish I Could Go Travelling Again e So Romantic. A ligação de Ishiguro e Kent não é casual: ele costuma escrever sobre jazz em publicações inglesas e seu último livro tem o mesmo título de um standard de Jay Livingston e Raymond B. Evans – Never Let Me Go. O velho mundo está em duas canções de Serge Gainsbourg, brilhantemente cantadas em francês perfeito: Ces petites rien e La saison des pluies. E de quebra, Samba Saravah, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, música celebrizada por Pierre Barouh em Um Homem e uma Mulher, filme de Claude Lelouch.

Roberta Gambarini fez o caminho contrário. Nascida em Turim, mora, desde 1986 nos Estados Unidos. Jane Monheit e Tierney Sutton, suas contemporâneas, participaram do mesmo concurso que as fez chamar a atenção dos críticos de música: o Thelonious Monk Institute of Jazz Vocal Competition. A comparação que se faz com Ella Fitzgerald não é de toda descabida. Ela canta tão “fácil” quanto Ella. A música flui como um rio que segue seu curso, sua dicção é clara e a forma de como “constroi” os scats não tem concorrentes no cenário musical de agora.

A primeira vez em que a ouvi foi numa estrada americana. Como de costume, estava com um bolo de cds comprados e louco para ouvi-los, mesmo antes de voltar ao Brasil. Não me causou “aquela” impressão. O surpreendente é que a voz de Roberta vai, aos poucos te penetrando, e de repente, te possui. O primeiro CD lançado no mercado americano começa com a música que dá título a ele: Easy to Love. Começa a capella, daí entra o baixo marcando o ritmo, entra a bateria e depois o piano; discretos scats acompanhados do baixo fecham num discreto final. Novamente, apenas o baixo e sua voz introduzem o tema de Lover Man e, sorrateiramente, o sopro aberto e sensual do sax de James Moody sinaliza a entrada do piano e de uma discretíssima bateria. Sobre todos os instrumentos reina a voz de Gambarini: em On the Sunny Side of the Street e em I Loves You Porgy, as modulações de voz revelam total domínio. Para concluir, vale também uma ouvida em No More Blues, a nossa Chega de Saudade, naquele ritmo de samba que apenas os americanos fazem e, nós brasileiros, já nos acostumamos. Como em várias faixas, a voz entra solo e depois os demais instrumentos entram. É como um prelúdio que te prepara para o que vem.

Especial mesmo é o segundo cd lançado pela EmArcy no mercado americano: o You Are There. Acompanhado apenas pelo nonagenário e legendário pianista Hank Jones, cada número prepara para um próximo nível de encanto. Acompanhar cantores é uma verdadeira arte. Nisso, Jones, como Tommy Flanagan, é mestre. Coincidentemente, por anos acompanharam a grande diva Ella Fitzgerald. E é nessa arte que a combinação de Jones e Roberta chega perto da perfeição. A voz límpida se soma à elegância econômica quase minimalista dos solos de Hank. Paralisante. Dá para ouvir o cd inteiro sentado no sofá, paradão, só curtindo.

Deve ser difícil para o artista estar sempre tentando se superar.Como para qualquer ser humano, um pouco de acomodação é necessário. Na volta da minha última viagem, em agosto, a primeira coisa que fiz ao chegar foi colocar o recém lançado So In Love. Senti um certo desapontamento. Já ouvi Day in, Day out melhor. Senti que era um CD que poderia ser classificado como um “mais um do mesmo”. Mas não é por isso que Marisa Monte é idolatrada? Roberta também tem esse direito. E depois: seu So in Love é genial e suas versões para Golden Slumbers e Here, There and Everywhere são bem originais. Na quinta vez em que ouvia a CD, estava novamente apaixonado por Roberta Gambarini.

Para referência, àqueles loucos de “possuir” os CDs em vez de, simplesmente baixá-los pela Internet, Breakfast on the Morning Tram, de Stacey Kent e You Are There, de Roberta Gambarini e Hank Jones sairam no Brasil. Não precisa importar. Com um pouco de esforço dá para encontrar. Em São Paulo, a dica é a Pop Discos, na rua Teodoro Sampaio 763. Tel. 11-3083.2564.


Roberta Gambarini canta Lush Life.




O More Than You Know, com Stacey Kent, é espetacular.