quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Ella Fitzgerald, a mulher invisível

Ella, na língua portuguesa, tem uma característica que a torna única: a letra “L” dobrada. E, sem dúvida, é única. Não que seja a melhor de todos os tempos no jazz. Um número considerável de pessoas, sim, a consideram. Outras milhares preferem Billie Holiday e Sarah Vaughan. Alguns podem dizer que esquece-se de Carmen McRae… ou Anita O’Day? O certo é que nessa mania de listas de “melhores” que a humanidade gosta de fazer, as três primeiras são as mais lembradas. Por uma coincidência todas são negras. É difícil alguém colocar as brancas Anita, June Christy, Peggy Lee, Doris Day ou Chris Connor neste panteão, mas todas são ou foram ótimas. Essas unanimidades são estranhas. Então B.B. King é a maior figura do blues de todos os tempos?

Ella Fitzgerald
Pouco se sabe da vida de Ella Fitzgerald. Que foi casada com Ray Brown por alguns poucos anos, sim. Eram dois pesos pesados. A anedota que corre é de que Brown estava acostumado com grandes volumes, já que tinha de empunhar e carregar seu baixo acústico. Em sua vida não aconteceram grandes tragédias como as de Billie, nem embrenhou-se em drogas como Rosemary Clooney, ou emborcou-se na vodca como Anita O’Day e nem sofreu desgraças pessoais como casamentos tempestuosos e nem quebrou hotéis como astros de rock. Não deu muitas entrevistas. Ella ficou conhecida pela voz. Sem atrativos físicos especiais como os de Julie London, da platinada Peggy Lee, sem a beleza enigmática de Billie Holiday, parece que era conhecida por seu mau humor que nunca se desvelou em suas apresentações públicas. Sua carreira, afinal, foi acontecendo sem sobressaltos. Foi como se houvesse apenas a voz e seu corpo físico fosse algo abstrato, independente e pouco percebido. Seu canto sobrepujou em muito sua pessoa física, o que hoje seria inconcebível. O mundo é das celebridades que, junto do talento, como Amy Winehouse ou Janis Joplin – cantam ou cantavam e muito – mas têm suas vidas tempestuosas desnudadas ao público ávido por “muito barulho por nada”.

Ella começou cedo, com menos de vinte anos. Descoberta pelo baterista Chick Webb, tornou-se crooner e nem a morte prematura de seu mentor foi obstáculo à sua ascensão. Antes de gravar pela Verve Records foi contratada da Decca. Alguns registros dessa época tornaram-se indissociáveis de Ella. Na Verve, sob a direção de Norman Granz, gravou uma série de songbooks com standards dos compositores como os irmãos Gershwin, Harold Arlen, Cole Porter e outros notáveis que revolucionaram a música americana do século XX.

Na Decca o repertório foi mais variado e, provavelmente, não era tão focado no jazz. Alguns dizem que era a mão do produtor e manager Milton Gabler. Existe, no entanto, mais de uma vez Ella disse ser uma cantora de baladas. E, realmente, nesse gênero era incomparável. Seu My One and Only Love é daquelas de amolecer até os corações dos broncos e brucutus. Ella quando iniciou a carreira tinha uma voz de menina. E é uma das poucas que conseguiu mantê-la quase igual durante a carreira. As de Sarah Vaughan e Billie Holday ou mesmo da brasileira Leny Andrade, para o bem ou para o mal, sofreram transformações radicais. Compare-se os registros de Holiday da gravadora Columbia, década de 1930 e seus registros dos anos 1950 pela Verve. A limpeza da voz ainda não castigada pelos excessos fazem das gravações da Columbia, em que é acompanhada por luminares como Lester Young e Teddy Wilson definitivas. Com o tempo, foi ficando pesada e sofrida. Com certeza, muitos preferem suas gravações tardias, pela dramaticidade ou por uma tendência natural do ser humano de se emocionar – ou se extasiar – com a desgraça do outro. Com Sarah aconteceu a mesma coisa. Basta comparar as primeiras com as últimas registradas pela gravadora Pablo. Que força tem Send in the Clowns, de Stephen Sondheim, na voz espessa e rascante de Vaughan, às vezes incômoda pelo excesso de vibrato, mas que qualidade!

Pois com Ella, cuja presença se devia, simplesmente, à voz, apesar de se dizer que teve duas uniões – fora a com Ray Brown – que não são paradigmas de felicidade: o primeiro era traficante de drogas. Anos depois, dizem, teve um relacionamento com um norueguês que foi preso por roubar uma antiga namorada. Pelo que parece, não teve sua carreira afetada por esses episódios e nem foram notícias na época. É como se sua vida particular tivesse sido invisível.

Bom, falando menos da vida alheia, o que importa e o objeto aqui são algumas canções que são só d’El(l)a. Uma é A-Tisket, A-Tasket, de 1938. Ella gravou e ninguém mais conseguiu cantá-la com aquele frescor e leveza. Dee Dee Bridgewater gravou no disco-tributo ‘Dear Ella’ e existe outro registro no DVD We All Love Ella, com a filha de Nat “King” Cole, Natalie. Registro mais duas: (I Love You) For Sentimental Reasons, que canta com The Delta Rhythm Boys, e If You Can’t Sing It) Mr. Paganini, de Sam Coslow. De Sentimental Reasons, tem a de “King” Cole, claramente calcada na de Ella – It’s Only a Papermoon é outra que ele canta, não sei se é coincidência. Mr. Paganini é superlativa: lindo arranjo, belos scats, riffs de sopros, alternâncias de clima. Ouvir esta música é imaginar um mundo divino e maravilhoso.

Este texto era para ser uma introdução a mais duas preferidas que vão ficam para outra vez: Stairway to the Stars e I’ve Got the World on String.

Veja Ella cantando Mr. Paganini:

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