quinta-feira, 19 de maio de 2011

O som ECM e seu mentor

Em 1975 foi lançado o álbum duplo Köln Concert pela ECM (Editions of Contemporary Music), gravadora criada por Manfred Eicher, músico de formação que trabalhara como assistente de gravação da Deutsche Grammophon, especializada em música erudita. Esse disco se tornaria o de maior vendagem na história do jazz. Se Köln Concert era jazz ou não, é uma questão irrelevante. O jazz é, por excelência, música de improviso, e isso, em muito o diferencia de outros gêneros musicais. Apesar dos detratores, a ECM contribuiu muito na música. Com quarenta anos completos da gravadora, seu criador, e também produtor da maioria dos discos, merece estar na lista em que se evidenciam Walter Legge (EMI), Alfred Lyons (Blue Note) e Teo Macero (Columbia).

Manfred Eicher
O primeiro lançamento da ECM foi Free at Last, de Mal Waldron. Com esta gravação mostrou para o que veio. Mal era pianista ligado à corrente avant-garde e “expatriado”. Depois de um colapso nervoso, retirado da cena musical, fora morar na Alemanha primeiro e, depois fixaria residência, até a sua morte, em Bruxelas. O álbum foi sua rentrée, em grande estilo, tocando um piano dramático e enérgico, refletindo o ambiente musical dos fins dos anos 1970.

Eicher gravou americanos – Jarrett, Chick Corea, Ralph Towner, Art Ensemble of Chicago – e europeus, revelando escandinavos e alemães – Terje Rypdal, Bobo Stenson, Eberhard Weber, Jan Garbarek – e montou formações em que as duas linguagens se mesclavam. Na formação da banda do vibrafonista americano Gary Burton, que gravou o esplêndido Ring, havia um jovem guitarrista de menos de 18 anos: Pat Metheny. Logo gravaria como líder. O primeiro é uma joia jazzística, que continua moderna até hoje: Bright Size Life. Metheny juntou-se a outro talento emergente – o baixista Jaco Pastorius – e o baterista Bob Moses gravando um dos melhores discos até hoje gravados nesse formato. Pat era extremamente habilidoso e talentoso e, sobretudo, jovem. Nos seus vinte anos jamais poderia passar incólume pela avalanche do rock. Devia ouvir rock e era, foi o que disse, admirador do Steely Dan, de Donald Fagen e Walter Becker, que fazia um pop apoiado por muitos músicos ligados ao jazz. Pat se juntou ao tecladista Lyle Mays, jovem como ele, e produziram sons climáticos um tanto estranhos à linguagem mais tradicional do jazz, no entanto, extremamente belos. Gravaria, em 1979, um álbum “roqueiro”: American Garage. Seria outro sucesso de vendas da ECM.

A gravadora de Eicher, à mercê dos que a execravam, significou uma renovação na linguagem musical. Os mesmos que odiaram o “third stream”, corrente em que o jazz se “aproximava” do erudito, idealizada por Günther Schuller e que teve como um dos principais entusiastas John Lewis, pianista, compositor e líder do Modern Jazz Quartet, torceram seus narizes para os “produtos ECM”. Manfred soube, sabiamente, mesclar as linguagens europeia e americana. Keith Jarrett, que tinha seu quarteto americano (Jarrett/Haden/Redman/Motian) em registros pela Impulse e, na ECM, formou um europeu com o saxofonista Jan Garbarek, Palle Danielssen e Jon Christensen. São dois tipos de approach com a música bem diversos.

Músicos talentosos e pouco conhecidos fora de seus países de origem tiveram a oportunidade de gravar pela ECM e, assim, puderam mostrar seus trabalhos para o resto do mundo. São os casos de Egberto Gismonti, o bandaneonista argentino Dino Saluzzi, o violinista indiano L. Shankar e o tunisiano Anouar Brahem, que toca um instrumento chamado oud, meio parecido com o alaúde. Mas Eicher não ficou circunscrito ao jazz. Criou o selo “ECM New Series”, abrigando compositores contemporâneos de música erudita como Arvo Pärt, Alfred Schnittke, Gavin Bryars, Heinz Holliger e John Adams. Antes da criação do novo selo, gravara discos bem “diferentes”, como Dolmen Music, em 1979, que é um conjunto de experiências radicais com vozes – “primais”? – da americana Meredith Monk, e Music for 18 Musicians e Tehilim, ambos de Steve Reich, no início da década de 1980. São peças que, comumente, estão classificadas como música repetitiva ou minimalista. Na primeira, o tema vai se desenvolvendo em repetições que vão mudando conforme as combinações instrumentais e vocais. ‘Tehilim’ é uma peça sustentada nos salmos hebreus que são cantados por quatro vozes femininas acompanhadas por instrumentos de sopro, cordas e percussão. Dos compositores do que é considerada “música repetitiva”, Reich é um dos expoentes, muito superior que seu conterrâneo Philip Glass. Suas composições têm um colorido especial; são hipnotizantes pelas combinações de instrumentos percussivos – como marimbas e xilifones – e de cordas e sopros e vozes que são entoadas e tocados em “loopings” e variações quase imperceptíveis, bem mais ricas que as massas sonoras de Glass. Repetição não significa, necessariamente, monotonia.

Diferentes formações resultaram em diferentes resultados. E, apesar de, sim, existir o que pode ser chamado de “som ECM”, são registros de muito bom gosto e de resultados muitas vezes, surpreendentes. Apenas numa gravadora como a de Eicher foram possíveis reuniões como a do trumpetista e pianista “acidental” Don Cherry com o baterista polifônico Ed Blackwell (El Corazón), Don Cherry, Ed Blackwell, o baixista Charlie Haden e o sax tenor Dewey Redman (Old and New Dreams), ou do Codona (“Co” de Colin Walcott, “Do” de Don Cherry e “Na” de Naná Vasconcelos). A liberdade, bom gosto e, ao mesmo tempo, a mão de ferro do alemão, deu abertura para que, por exemplo, Egberto Gismonti registrasse suas composições para orquestra ou Jan Garbarek fizesse discos “étnicos” com o músico paquistanês Ustad Fateh Ali Khan, Anouar Brahem ou Ustad Shaukat Hussain. Seria até monónoto registrar outras combinações que Eicher propiciou ao público que gosta de música, sem conceitos préconcebidos. O alemão e sua gravadora, certamente, ficarão na história como um dos responsáveis pela evolução da música distanciada de qualquer rótulo.

Para exemplificar a ousadia de Manfred Eicher, o alemão gravou alguns discos com a americana Meredith Monk. Veja um trecho da performance de Dolmen Music, que foi gravada em disco.



Publicado em 20/4/2010

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Herbie Hancock e os novos standards

Às vezes, quem ousa demais dá com os burros n’água. Acho que é o que acontece com The New Standard, de Herbie Hancock, lançado em 1996. Vários músicos das gerações mais novas têm interpretado sucessos “roqueiros” dando-lhes roupagem jazzística. O sax tenor Joshua Redman já fez isso com I Feel Good, sucesso na voz de James Brown. Conheço pelo menos duas interpretações de Imagine, de John Lennon: uma do pianista cubano Gonzalo Rubalcaba – médio – e outra do pianista indiano Vijar Iyer, bem interessante. Geoff Keezer, também pianista, gravou um inovador Venus as a Boy, da islandesa Björk e Brad Mehldau, considerado pelas revistas especializadas o melhor pianista de jazz da atualidade, gravou várias músicas da banda inglesa Radiohead.

Herbie elétrico
Herbie Hancock é, dos que estão em atividade, um dos mais inquietos e experimentais. Nessas suas ousadias, quase sempre é bem sucedido. Aventurou-se pela música clássica compondo peças para a voz da cantora lírica Kathleen Battle e gravou o segundo movimento do Concerto para Piano e Orquestra, de Maurice Ravel. Porém é na eletrificação do jazz que sua contribuição é capital.

Na agitada década de 60, com estudantes indo às ruas, guerra do Vietnã, mudanças de comportamento quanto às drogas e ao sexo, bandas de rock surgiam em cada esquina e o jazz entrava em crise. Artistas de todos os tipos, escritores e poetas da beat generation amavam Brubeck e encantavam-se com Chet Baker. A década virava e o mundo sofria uma reviravolta e o rock explodiu com toda força. Antenado com seu tempo, Miles Davis sentiu que o jazz devia seguir essas transformações. Eletrificou o jazz, no começo, com a adição do do piano elétrico e depois a guitarra elétrica. O universo se rendia ao gênio de Jimi Hendrix. Bem, sobrou para Hancock. Apesar da resistência inicial de explorar as possibilidades do Fender Rhodes, acabou “convencido” pelo chefe da banda. Valeu a forçada de barra. Miles acendera a chama da inquietude que hibernava dentro dele.

Curiosamente, mesmo tendo se “submetido” às vontades do dono da banda, foi “saído”: quando voltou da lua-de-mel, recebeu o “bilhete azul”. Antes e durante o tempo em que esteve tocando no quinteto de Davis, continuou a gravar vários discos-solo pela Blue Note. E eles, até hoje, continuam modernos.

No álbum The New Standard gravou apenas “clássicos” do pop/rock das décadas seguintes a de 1970, à exceção de Norwegian Wood, de Lennon & McCartney e Scarborough Fair, cantada por Simon & Garfunkel, que são dos anos 1960. Tem Peter Gabriel (Mercy Street), Prince (Thieves in the Temple), a anglo-nigeriana Sade (Love Is Stronger than Pride) e Nirvana (All Apologies). Após ouvir o CD inteiro, o melhor a se fazer é sair correndo atrás das interpretações originais: são muito melhores. Dá saudades de ouvir a voz dilacerada de Kurt Cobain. E olhe que os “sidemen” são de primeira: Jack DeJohnette na bateria, Dave Holland no baixo, Don Alias na percussão, Michael Brecker no sax e John Scofield na guitarra. Estranhamente, não aconteceu a química. Brecker toca um sax soprano que mais parece o meloso Kenny G, e John Scofield – bom, aí vai uma pequena dose de preconceito – como sempre, toca uma guitarra pavorosa.

Desde o início de sua carreira, Hancock sempre esteve antenado com o seu tempo. Basta lembrarmos de que é autor de Cantaloupe Island, que tornou-se conhecida pelo público mais jovem por meio da interpretação sampleada do grupo Us3. Outra composição, Watermelon Man, também é um exemplo de como no início da década de 1960 Hancock já era funk, absorvendo alguma coisa da música popular. É certo que era uma tendência ou corrente dos contratados do selo Blue Note. O guitarrista Grant Green fazia um som mais vibrante e “balançado”, assim como o pianista Horace Siver.

Em 1976, quando gravou o excepcional Headhunters usando vários instrumentos eletrônicos até então estranhos ao mundo do jazz, como o clavinete e o sintetizador Arp Odissey, apenas ampliava os limites da música, demonstrando que fronteiras são mesmo para serem atravessadas. Hancock trilhou pelo caminho aberto pelo revolucionário Bitches Brew, de Miles Davis, e soube construir seu próprio caminho. Logo depois da saída do quinteto de Miles montou uma banda de primeira com caras como o brilhante sax-barítono e clarinetista-baixo Bennie Maupin, além de incluir guitarras “wah-wah”, incorporando elementos da música popular negra. Headhunters, é “O” clássico do jazz-fusion. São releituras radicalmente eletrônicas de músicas que havia composto na década de 1960. Na sua busca pela contemporaneidade misturou o jazz com a soul music, com o funk de Sly and The Family Stone e, mais tarde flertou até com o hip-hop. Herbie Hancock não é apenas moderno. Parafraseando Drummond, cansou de ser moderno. Ele está em seu mister para ser eterno.

Cantaloupe Island com Hancock e parceiros de primeira: Dave Holland, Pat Metheny e Jack DeJohnette.



Publicado em 10/11/2009

terça-feira, 3 de maio de 2011

Herbie Hancock e Joni Mitchell

Os discos-tributo são uma febre no mercado da música faz um bom tempo: descobriram seu potencial mercadológico. No Brasil, a gravadora Lumiar produziu inúmeros songbook. É sempre interessante ouvir como o outro interpreta outrém. Particularmente, é uma fórmula que me atrai. É enorme a quantidade de compositores/intérpretes no País e, na maioria, são craques em ambos os misteres. Composições de João Bosco são quase indissociáveis a sua maneira de cantar. Existe versão melhor de Cais que a do próprio Milton Nascimento? Alguém pode discordar citando as interpretações de Caetano Veloso ou a de Nana Caymmi. E Milton cantando ‘Beatriz’, de Edu Lobo e Chico Buarque? Depois dele até ficou difícil avnturar-se a cantá-la. A concorrência é braba.

Melhores ou não, aquele que interpreta, passa sua visão pessoal com suas transcendências e suas limitações. Adoro Na batucada da vida, de Ary Barroso, cantada por Tom Jobim. Acho que a maioria das pessoas vai concordar comigo se disser que Tom não é um grande cantor. Muitos discordarão se disser que prefiro a dele à de Elis Regina, por exemplo. Mas é fato. Não é por afinação, voz, ritmo etc. Acho que combina com o jeito “largado” com que canta. Não sei se acho o Lady Madonna com os Beatles cantando melhor do que a interpretação de Caetano. Porém, posso dizer com tranquilidade que, depois de ouvi-la no ritmo lerdo que imprime, tornou-se o meu “modo” de ouvi-la. Ele soube ver um outro lado da música. O mesmo acontece com For No One. Sua versão é fenomenal. Não diria a mesma coisa de seu Help, mas é bem legal esse “jeito de olhar” de um intérprete inteligente.

Herbie e Joni
A amizade do pianista Herbie Hancock com a compositora e cantora canadense Joni Mitchell vem de muito tempo. Em 1979, Hancock e o saxofonista Wayne Shorter colaboraram no álbum Mingus. De cantora folk, no início da carreira, ampliou em muito seu repertório por meio de colaborações de músicos de vários gêneros. Naturalmente, aproximou-se do conterrâneo Neil Young e dos outros três que formariam uma das superbandas da década de 1970: Crosby, Stills, Nash & Young. É autora da música Woodstock, que está no disco Déjà vu. E isso foi na década de 1960. Não deixou a peteca cair e continua a compor e a cantar muito bem.

Em 2007 foi lançado o CD River: The Joni Letters. Não é especificamente um tributo. Joni Mitchell é o plot para o disco concebido por Hancock e o coprodutor de longa data de Mitchell, Larry Klein. A maioria das canções são cantadas por convidados: Court and Spark por Norah Jones, Edith and the Kingpin por Tina Turner, River por Corinne Bailey Rae, Amelia por Luciana Souza e The Tea Leaf Prophecy, pela própria Joni Mitchell. A única voz masculina é a de Leonard Cohen em The Jungle Line, em que, com sua voz cada vez mais cavernosa, apenas recita a letra e fecha com chave de ouro o CD. As três restantes são instrumentais, sendo duas de outros autores: Solitude, de Duke Ellington, e Nefertiti, de Wayne Shorter, saxofonista que participa do álbum, com o baixista Dave Holland, Vinnie Colaiuta na bateria e Lionel Loueke na guitarra. É um time de primeira.

É interessante prestar atenção ao partido que Hancock tomou ao gravar o CD. A instrumentação é econômica. Intervenções pontuais de Wayne Shorter no sax tenor, um discreto baixo de Holland e a bateria sendo quase que apenas um delicado “colchão” de sons percutidos e uma guitarra que quase não aparece, valorizam as figuras que Hancock constroi ao piano. Foge-se um pouco dos espaços de um instrumento servindo de solo. Na bela versão instrumental de ‘Both Sides Now’, o piano é uma linha mestra em que se atam os fios dos sons da bateria e do baixo com a guitarra em intervenções “abstratas”, em que o arremate são as notas melancólicas e esparsas do sax tenor de Wayne Shorter.

São brilhantes as versões de Corinne Bailey Rae cantando ‘River’ com o delicado violão acústico soando no fundo, e a de Luciana Souza em ‘Amelia’. Até Norah Jones se sai bem em ‘Court and Spark’, primeira faixa do cd. Tenho dúvidas se o disco é tão bom para merecer os Grammy em 2008 (“Álbum do Ano” e “Melhor Disco de Jazz Contemporâneo”). Bom, se premiam Beyoncé, Kenny G e Julio Iglesias, bem, tudo é possível. Tem Joni Mitchell melhor e Hancock também. É bom, mas não tinham melhores?


Corinne Bailey Rae canta River.




Publicado em 12/11/2009