quinta-feira, 28 de abril de 2011

Joni Mitchell ficou pop e menos popular

Depois de discos muito bons nos quais explorou a linguagem do jazz, Joni Mitchell ligou-se a David Geffen, dono da gravadora Asylum – que, mais tarde fundaria a Geffen Records – e lançou Wild Things Run Fast em 1982, Dog Eat Dog e Chalk Mark in a Rain Storm. Foi o período chato. A ideia de Geffen de chamar Thomas Dolby para produzir um disco de Joni não foi bom negócio. Seu gosto por instrumentos eletrônicos, mais associados ao “new wave”, decididamente não combinou com o estilo da cantora. Foi um período em que, mesmo com os “apelos populares”, a vendagem de seus discos caiu.

A parceria que deu certo mesmo foi a dela com o baixista Larry Klein. Tornou-se coprodutor e foi, por doze anos, parceiros mais que profissionais. Wild Things Run Fast seria o primeiro em que trabalhariam juntos. Em 1994 lançou Turbulent Indigo, que deu mais um Grammy a Mitchell. É um disco brilhante com uma coleção de boas faixas. A melhor, sem dúvida, é Sex Kills: “Oh and the tragedies in the nurseries –/ Little kids packin’ guns to school/ The ulcerated ozone/ These tumors of the skin –/ The hostile sun beatin’ down on, The massive mess we’re in!/ And the gas leaks/ And the oil spills, And sex sells everything,/ And sex kills./ Sex kills…” Forte, não? E a música é também. É um dos clássicos dos anos 1980 e 90. Klein soube criar uma atmosfera envolvente, avara em intervenções instrumentais. A voz de Mitchell navega sobre uma base sonora econômica em que destacam-se o violão e “sugestões” que a própria Mitchell cria com poucos acordes nos teclados eletrônicos. Ouve-se uma nota de baixo, um breve solo de Wayne Shorter, um “steel guitar” e percussões que se amalgamam ao resto do tecido sonoro. É um dos grandes discos de Mitchell, como foram Hejira e Blue.

Seu disco seguinte, Taming the Tiger, possui muitas coisas em comum com o anterior. Uma delas é a de que os dois são um pequeno portfólio de sua obra pictórica. Apesar de sua habilidade com os pincéis, é uma “mistureira” de estilos, onde predomina a influência de Van Gogh (a capa de Turbulent Indigo é um autorretrato après Van Gogh sem a orelha), mas que tem ecos da pintura paisagística dos românticos americanos e ingleses e até do pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti e do americano Maxfield Parrish. É meio “segunda classe”, mas se descontarmos o fato de que, antes de ser pintora, é compositora e cantora de talento, tudo bem… aí vai um desconto – mesmo que ela, em uma entrevista, tenha dito que era antes, pintora e depois, musicista.

Mitchell e seu companheiro inseparável: o cigarro
Taming the Tiger pode ser considerado uma continuação de Turbulent Indigo. A base sonora é bem semelhante, mas as composições são inferiores. A melhor é a música-título, Turbulent Indigo. A última faixa, Tiger Bones, é Turbulent… em sua versão instrumental, por sinal, muito boa, e é uma amostra do estilo bem pessoal dela tocar violão, que nessa época ficou eletrificada e “sintetizada”. Se você é fã de seu estilo, isso se deve a algum tipo de identificação com tudo o que fez em sua longa carreira, que começou nos anos 1960. Como compositora soube ir se moldando aos “tempos mutantes”. Em 1980 a voz de Mitchell não possuia mais o frescor e os agudos que soltava em músicas como o clássico Woodstock ou em My Old Man. Porém, a maioria das características que marcaram seu estilo de compor e cantar se mantiveram. As mudanças na voz moldaram um outro “jeito” de cantar: ninguém fica impune aos abusos do cigarro, principalmente se for de alguém que começou a fumar com nove anos.

Mitchell canta Sex Kills.



Publicado em 1/12/2009

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Joni Mitchell e o jazz

“Sou primeiro, uma pintora e uma musicista em segundo lugar.” A afirmação é de Joni Mitchell. Se na música, não tem de provar mais nada, opiniões quanto suas habilidades como pintora, com certeza, não serão unânimes. Mas, no mínimo, tem mostrado que “tem jeito para a coisa” e que conhece algo de artes plásticas. Seu bom gosto cromático e gestualidade nas pinceladas demonstram que não pode ser considerada, simplesmente, diletante. Em suas pinturas há uma mistura de influências que vão desde Van Gogh – a mais evidente – aos mais modernos, como Georgia O’Keefe e Richard Diebenkorn.

O lado pintora de Joni Mitchell
Além do lado musical, tem exercido esse talento para as artes visuais desde o primeiro disco: é seu o desenho de Song to a Seagull. A maioria das capas de seus discos são de sua autoria. Dessa forma, no decorrer desses quase 40 anos de carreira, pudemos acompanhar sua evolucão como pintora também. Seu lado “artista plástica”, assim como sua carreira musical, demonstram um certo “desassossego” típico dos grandes artistas, que sempre estão em busca do novo.

Nesse festival de classificações é, até hoje, considerada cantora folk. Um ano depois de lançar o primeiro disco, ganhou um Grammy como melhor cantora desse gênero. Em vez de “sentar na cama da fama”, em seu terceiro álbum – Court and Spark, de 1974 –, fugindo da fórmula folk “violão/voz”, “violão/voz/gaita” ou “piano/voz”, gravou com músicos ligados ao jazz – o guitarrista Larry Carlton, o tecladista Joe Sample e o saxofonista Tom Scott. Resultou num disco de sonoridade sofisticada, que pode ser comprovada em canções como Free Man in Paris, com suas breves notas de flautas e guitarras com os violões acústicos marcando o ritmo. Aliás, ninguém toca violão como ela. Isso não quer dizer que seja a melhor. Significa apenas que “ninguém toca como ela”. Utiliza-se de afinações inusitadas imprimindo ritmos únicos, às vezes, dramáticos e percutidos. Ouça o “intro” do disco Don Juan’s Reckless Daughter para entender o que quero dizer.

A virada, no entanto, acontecerá no belo álbum Hejira. O trabalho gráfico – pena que tenha se perdido na versão em CD – é primoroso. Na capa tem o rosto de Mitchell em primeiro plano à frente de uma paisagem solitária e, fundido em sua roupa preta, uma estrada que termina numa grande nuvem branca. As imagens nos remetem a Ansel Adams, a Edward Weston e a Michael Keena, àquelas paisagens americanas em primoroso branco e preto. É o início da parceria com o baixista, prematuramente morto, Jaco Pastorius. O som de seu baixo, inimitável, é o diferencial. Resultou numa perfeita combinação com o violão de Mitchell. Neste álbum estão Coyote, a maravilhosa Amelia – homenagem que faz à pioneira da aviação, Amelia Earhart –, Furry Sings the Blues, Hejira, Blue Motel Room e Black Crow. Vejam o que é o mercado: a partir desse disco, passou a vender menos.

Don Juan’s Reckless Daughter, o disco seguinte, representa uma ruptura na sua discografia. O saxofonista Wayne Shorter, os percussionistas Don Alias, Airto Moreira, Alejandro Acuña e Manolo Badrena, e o arranjador Michael Gibbs participam da gravação. Mas é o baixo fretless de Pastorius que imprime o ritmo de quase todo o álbum. Suas participações são sempre tão significativas que, ao ouvirmos as primeiras notas, sabemos que é ele. Ouçam o primeiro disco solo de Pat Metheny, Bright Size Life. O baixo cantante de Pastorius se sobressai de tal forma que merecia seu nome na capa junto ao de Metheny. O mundo realmente passou a prestar atenção nele quando entrou para a banda formada por Wayne Shorter e Joe Zawinul. O Weather Report virou “outro” Weather Report: tornou-se a banda de Shorter, Zawinul e Pastorius. Por sinal, Victor Bailey, que o sucedeu no baixo, foi avisado pelos seus líderes de que seria apenas um sideman. E olhe que ele não era ruim: mesmo discreto, arrasa na faixa título Procession.

Don Juan é a aventura mais radical de Mitchell. Quando saiu, em 1977, causou-me um certo estranhamento. Sei que, décadas depois, ainda ouço este e outros discos de Joni: é um caso de amor “comprido”, tanto quanto a quantidade de namorados que teve. Os destaques são Cotton Avenue, Talk to Me, Jericho e Don Juan’s Reckless Daughter, que são a mostra de quanto funcionou a parceria Pastorius/Mitchell, e The Silky Veils of Ardour, brilhante balada que fecha o disco. As “experimentais” são The Tenth World, com quatro percussionistas e Dreamland, meio “tribal”. A propósito, existe uma versão desta última, gravada por Caetano. Mas, de todas as faixas, a mais impressionante mesmo é Paprika Plains, arranjada e orquestrada por Michael Gibbs, que chamou a atenção de Charles Mingus para a música de Mitchell (leia post anterior: http://bit.ly/eX6YHX).

Ouça Silky Veils of Ardour.



Publicado em 24/11/2009

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Joni Mitchell e seu amor pelos baixistas

Paprika Plains é uma música de dezesseis minutos e meio. Deve ser a mais longa que Joni Mitchell gravou. A peça tem a estrutura de uma suite, pois se desdobra em climas e tempos diversos. Vale a pena ouvi-la. Depois dos primeiros versos cantados há um longo “colóquio” do piano tocado por Joni com a orquestra regida por Michael Gibbs. Na reentrada da voz, o baixo de Jaco Pastorius e a bateria de John Guerin servem de introdução para o solo do sax soprano de Wayne Shorter. A música começa de um jeito, fica de outro e termina outra. Parece que o baixista Charles Mingus gostou dela e isso serviu de pretexto para que se conhecessem pessoalmente.

Mitchell e Charles Mingus
O encontro dos dois rendeu o disco Mingus. Por obra do destino tornou-se uma espécie de testamento do baixista. Mingus morreu em 1979 com 56 anos, na mesma época em que o disco estava sendo lançado. Há um lugar especial na história do jazz para ele. Com Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Bud Powell e Max Roach revolucionaram o jazz com o bebop. Porém sua música extrapolou esse estilo. Sua concepção “orquestral” era rica em climas contrastantes que alternavam calma e fúria. As aspas são em razão de me referir a algo diferente de se ser um grande arranjador como foram Nelson Riddle ou são Bill Holman e Maria Schneider, que são nomes associados às big bands. Falo de formações menores. Mingus foi único, inventando belas sonoridades em harmonizações com o trombone, o trumpete e os saxofones. A cozinha com seu baixo e a bateria de Dannie Richmond era a base perfeita para os voos dos sopros. Seus pianistas, como ele, eram ferozes mas sabiam ser doces. Os climas que criava em suas longas peças eram fenomenais e são comparáveis aos que Duke Ellington produzia com o sax barítono de Harry Carney, o alto de Johnny Hodges e os tenores que passaram por sua banda.

O projeto de Joni Mitchell envolveu encontros com o baixista já preso à cadeira de rodas em sua residência no México. Trechos das conversas e brincadeiras – até um ‘parabéns pra você’ com direito a um “motherfucker” proferido por ele – foram intercaladas com as músicas gravadas. É isso que dá um tom “diferente” ao disco e também um certo tom de testamento ao qual me refiro no parágrafo anterior. No que o álbum pode ser considerado jazzístico? Apenas porque coloca letras em composições de Mingus? Não. O que diferencia o jazz do pop? Pode ser a improvisação ou a exploração de temas e suas variações. E é o que Joni faz, acompanhado do baixista Jaco Pastorius, do sax de Wayne Shorter, de Herbie Hancock no piano elétrico, de Don Alias na percussão e Peter Erskine na bateria. De todas as músicas do disco, a melhor, disparado, é Goodbye Pork Pie Hat, que Mingus havia composto em homenagem ao saxofonista tenor Lester Young e seu inseparável chapeu.

Outro projeto “jazz” de Mitchell é o show Shadows and Light, disponível em dvd e cd importados. É maravilhoso e, na minha opinião, sua melhor incursão pelo terreno jazzístico. O time é de primeiríssima: Pastorius, seu parceiro dos discos anteriores, o guitarrista Pat Metheny em sua melhor forma, o tecladista Lyle Mays, parceiro de Pat na época, o saxofonista tenor Michael Brecker e Don Alias na bateria. Tem um solo espetacular de Metheny em Amelia e uma performance matadora de Pastorius em que “tasca” um trecho de ‘Third Stone from the Sun’, de Jimi Hendrix. Mas o melhor ficou para o final: Shadows and Light com Joni, o sintetisador de Lyle Mays e o grupo vocal The Persuasions (vejam em: http://bit.ly/98vFBB). Maravilha pura. Mas como nada é perfeito: que combinação mais estranha aquela calça verde que vai até pouco abaixo do joelho, de lacinho, com a blusa violeta que Joni veste no show!

God Must Be a Good Man




A Chair in the Sky



Publicado em 26/11/2009

terça-feira, 5 de abril de 2011

Várias formas de dizer “não me deixe”

Ainda não consegui saber se gostei ou não da cantora Maria Gadú. Achei sua voz um tanto parecida com a da cantora anglo-nigeriana Sade Adu. É correto dizer que uma boa divulgação pode convencer que tal ou qual produto é bom. Nesse mundo de cantoras surgindo, só assim. Tem CéU, Maryana Aydar, Ana Cañas, Veronica Ferrarini… são bonitas ou chamam a atenção por atributos extramusicais. Pergunto se a questão física é um quesito básico nesses dias em que vivemos. Nem Ella Fitzgerald e nem Billie Holiday e muito menos Bessie Smith eram exatamente modelos de beleza. Os tempos são outros, mas, o que ficará desses novos “talentos”? Com certeza, suas qualidades como cantoras.

Maria Gadú é mais um intérprete que gravou Ne me quitte pas. Tem sua originalidade. Maria canta num ritmo “balançado”, em que o lado “fossa” fica de fora. Não combina com a música.

Ne me quitte pas, de Jacques Brel, ganhou mundo
O melhor guia de interpretação de uma canção, geralmente, é a versão de quem a compõe. O autor de Ne me quitte pas, o franco-belga Jacques Brel, afirma que ela não é uma canção de amor e sim sobre a “covardia de um homem”. Até quem não entende uma só palavra de francês, como eu, sente que o refrão ‘ne me quitte pas’ repetido várias vezes é uma súplica. Antes de ser romântica, é dramática. Sua interpretação é guiada por esse mote. E é espetacular. Acompanhado apenas pelo piano em seu início, lá pela metade dela ouvimos os sons da orquestra – quase não se ouve de tão baixo – e, no finalzinho, surge o som de uma flauta no canal direito. Das dezenas de Ne me quitte pas que conheço, quase todas são muito próximas à de Brel.

Se tinha gente que não a conhecia, depois que a interpretação de Maysa dessa música foi utilizada como tema de abertura para a minissérie Presença de Anita, usando “aquele” lugar-comum, de norte a sul, popularizou-se. Tem gente que tende a desprezar o que fica popular. Como se fossem parte de uma “elite”, sentem-se especiais por “gostar” apenas do “que uns poucos eleitos conhecem”. É o preconceito raso dos que “se acham”. O que tem qualidade está acima dessa “pobreza”.

Ne me quitte pas é uma das canções francesas mais gravadas, merecidamente. Caiu não só no gosto dos intérpretes “populares”, mas também no dos que são mais identificados como jazzistas. Dessa infinidade de gravações, talvez a mais conhecida – o que não quer dizer que seja a melhor – seja a de Nina Simone. Sua forma de cantar combina perfeitamente com o mood da canção. Nina merece o silêncio que fazemos ao ouvi-la: dá até para ignorar o seu francês canhestro. Das gravações um pouco mais recentes, merecem lugar especial a de Dee Dee Brigdgewater, há anos radicada na França e a de Karrin Allyson. Ela é mais ou menos conhecida do público brasileiro. É admiradora da música brasileira e já gravou vários clássicos da bossa nova, cantando-as em inglês e em um português razoável, até. Seu Ne me quitte pas está no cd From Paris to Rio, da gravadora Concord.

A versão em inglês – If You Go Away –, cuja letra é bem inferior à original, tem grandes registros. Uma delas é da cantora Helen Merrill, em que Stan Getz faz um belo solo de introdução tocando parte do Terceiro Movimento da 3a. Sinfonia de Johannes Brahms e a funde com o tema da canção. Ela está em Just Friends, de 1999, lançado pela gravadora EmArcy. A outra é de Shirley Horn, que está em May the Music Never End, de 2003. Os dois registros são excepcionais e essenciais.

Aos que preferirem uma versão instrumental, a do conterrâneo de Brel, Toots Thielemans, é ótima. O cd Chez Toots é de registros de alguns clássicos essenciais do cancioneiro francês.

Ne me quitte pas é um pouco como Aquarela do Brasil: é uma música que só não deve ter sido gravada por algum marciano, por enquanto. No YouTube estão disponibilizados uma enormidade de interpretações dela. Abaixo, listo os links de boas interpretações de Sting, Dusty Springfield e Patricia Kaas. Agora, se alguém quiser conhecer uma interpretação diferente e genial, procurem a do nosso grande Jards Macalé, que está em seu último cd Macao. Com mais de quarenta anos de carreira, continua a nos surpreender.

Eterna Maysa!



O original.



Publicado em 12/1/2010