quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A música circular do Rabo de Lagartixa

Quando menos esperamos, encontramos na próxima esquina algo surpreendente. É o caso de O Papagaio do Moleque do combo Rabo de Lagartixa. O CD pode ter sido lançado em 2009, mas podemos tranquilamente classificá-lo como uma das boas novidades para o ano 10.

Formado por Daniela Spielmann no sax soprano, sax tenor e flauta, Alessandro Valente nos cavaquinhos, Marcello Gonçalves no violão de 7 cordas, Alexandre Brasil no contrabaixo e Beto Cazes na percussão, o Rabo… faz um som que renova o choro. Não são apenas exímios instrumentistas. Os arranjos são primorosos. Inventivos, é a linguagem do choro tradicional que passa por uma geração que absorveu influências de outros gêneros musicais.

Da mesma forma que o alemão Johannes Brahms, no século XIX, inspirou-se na regionalidade de seus “vizinhos” para compor suas Danças Húngaras e Béla Bartók, no século XX, este, húngaro de fato, serviram-se de manifestações musicais locais, o brasileiro Heitor Villa-Lobos valeu-se do folclore brasileiro para compor peças de música erudita. Músicos maiores da música popular não se cansam de incensar a sua importância para a afirmação de nossa identidade. É vital a contribuição de nosso Villa para a qualidade de algumas obras de compositores mais sofisticados como Antonio Carlos Jobim e Egberto Gismonti.

Contribuem para a disseminação da obra de Villa-Lobos para o mundo as gravações de sua obra pianística por Cristina Ortiz e Nelson Freire e as apresentações e registros fonográficos da Osesp para o selo sueco Bis.

O fato é que Villa-Lobos nunca deixou de ser “popular”. Sendo “erudito”, procurou disseminar a música por meio de programas como o dos cantos orfeônicos à época do governo populista de Getúlio Vargas. Independente dos nostálgicos de Vargas ou de seus críticos, ele não deve ter dado muita importância às possíveis injunções políticas. Circulou com desenvoltura entre sambistas e chorões, de quem era amigo. Subverteu as classificações do erudito x popular, como George Gershwin nos EUA. De maneiras diferentes, sim. As pesquisas de Villa-Lobos sobre a música regional serviram de base às suas criações. O dado interessante da sua obra é de como ele tornou o “popular” em “erudito” e de como “popularizaram” o “erudito” Villa. O movimento circular ao qual me refiro é essa “volta”: apropriando-se da música regional brasileira, constrói peças eruditas e estas, por sua vez, influenciam a música popular. O ciclo se completa assim como a cobra morde seu próprio rabo. Ou a lagartixa, que ao perdê-lo, o reconstrói.

Como nada nasce por geração espontânea, Rabo de Lagartixa demonstra que é fruto de muito tocarem juntos. Não é uma reunião acidental. No álbum ‘O Papagaio do Moleque’ os arranjos são mais ou menos divididos entre Daniela, o cavaquinista Alessandro Valente e o violonista Marcello Gonçalves. Cabe ao baixista Alexandre Brasil o arranjo da música-título e ao produtor Paulo Aragão a participação em Poema Singelo e Ondulando. Os destaques, na minha opinião, são Tristorosa, composição de 1910, uma “valsa triste’, e Canto Lírico, terceiro movimento do Quarteto de Cordas nº 1.

A faixa que abre o cd é Bachianas nº 1. O cavaquinho parece anunciar o Carnaval. Engano. Apenas a primeira parte das Bachianas foi usada: a Introdução (Embolada). O arranjo é o “carnaval” particular do Rabo. A base é “pesada” e impactante. Lembra um pouco Bye Bye Brasil, de Chico Buarque. Parece uma viagem por diferentes sons. Ao início bem ritmado que acompanha a abertura do som do cavaquinho, entra o belo solo de sax tenor de Daniela. O arranjo da saxofonista é brilhante. O arco do contrabaixo é passageiro e significativo. Essa primeira música anuncia um Villa-Lobos cheio de belezas. Pena que dure pouco mais que quarenta minutos.

Veja e ouça:

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