sábado, 18 de setembro de 2010

Magda Tagliaferro, a mulher de cabelos verdes


Há muito tempo atrás fui assistir a um recital de piano, no Teatro Municipal, convencido pelo meu melhor amigo na época do ginásio – hoje, se não me engano, designa-se ensino fundamental –, que estudava no Conservatório do Brooklin, São Paulo, e gostava de música erudita. Nessa época em que mal completara quatorze anos, teimava em convencê-lo a ouvir rock, progressivo, para ser mais exato. Estava naquela fase de descoberta de Led Zeppelin, a banda inglesa Yes e o trio Emerson, Lake & Palmer. Em sua ireedutibilidade intelectual, dizia que aquilo não era música. Independente de achá-lo um tanto pedante – e ele, provavelmente me achando um “brucutu” cultural – credito a ele meus primeiros contatos com a música clássica e o gosto que fui tomando por esse gênero. O contrário não aconteceu. Por mais que tentasse convencê-lo das “qualidades” do rock, continuou com suas preferências.

Os “cabelos verdes” é referência a um filme de Joseph Losey
Pois então, voltando ao recital, meu amigo Domingos Darcie me empurrara para assistir à apresentação de Magda Tagliaferro – ou Magdalena para muitos. Sem ter me dado conta à época, fui um privilegiado ao ter a oportunidade de vê-la ao piano, em idade avançada, que seja dito. O destino faz coisa: fui um afortunado. Chegamos ao Municipal e sentamos onde nossas míseras mesadas permitiam. Naquele dia os deuses foram bondosos com a gente: ficamos no balcão superior, no lado esquerdo do palco, bem em cima do piano. Entrou uma senhora de vestido verde e, bem, não tinha os cabelos verdes como o título sugere. Seus cabelos cor de fogo em majestoso penteado e indumentária verde resultavam num conjunto, no mínimo, inusitado.

Sentados na primeira fileira, apoiados com os braços no peitoril, tínhamos uma visão privilegiada de Magda e o piano. Nossa visão era a do basto penteado e suas mãos percorrendo as teclas. Não vou lembrar do repertório. Recordo que o público a tratou com a reverência reservada às divas. Meu amigo, no entanto, bom pianista que não seguiu carreira, notou que ela esbarrava muito nas teclas. Eu não notava nada disso, mas ele ficava indicando as horas em que isso acontecia. Tagliaferro, nessa época, tinha perto de 90 anos. Não sei se isso poderia servir de justificativa se compararmos com as apresentações de Arthur Rubinstein e Wladimir Horowitz quase nonagenários.

O melhor argumento é a do crítico João Marcos Coelho, de O Estado de S. Paulo: mesmo errando era genial. Coelho observa que um Lang Lang, jovem revelação no piano, de ascendência chinesa, não erra uma nota, mas falta emoção, alma. É um bom argumento. Rubinstein dizia que era impossível não errar algumas notas durante um concerto. Para os que associam a beleza à perfeição devem esquecer das brilhantes interpretações das Suites de Cello, de Bach, por Pablo Casals e ouvir as de Mischa Maysky ou de Yo-Yo Ma. Nos anos 1970 fizeram um alarde enorme sobre a perícia e técnica do pianista russo Lazar Berman. Desapareceu. Garanto que muita gente nem sabe quem é. Resumo da ópera: não basta a técnica para ser um grande virtuose. E Magda provou isso. Grandes músicos fizeram parte de seu círculo e a adoravam.

Na ocasião do lançamento pelo selo Doremi de uma caixa com dois cds e um dvd com gravações do 3º Concerto para piano e orquestra, de Prokofiev, e em áudio, de algumas obras de Chopin, Mozart e também de seu amigo venezuelano Reynaldo Hahn, volta-se a falar de Tagliaferro na imprensa. O crítico Irineu Franco Perpetuo, na Folha de S. Paulo, diz que “financeiramente arruinada pelo segundo casamento, continuo se apresentando em público com idade avançada, quando as mãos já não obedeciam aos comandos de seu cérebro com a mesma presteza.” Deve ser. Quando a vi, beirava os 90 anos. Morreu com 93. Ela e Guiomar Novaes estão entre os maiores intérpretes de todos os tempos ao piano. O bom desses lançamentos é de que têm sido relembradas.

Saint-Säens - Concerto nº 5:



Republicação de texto postado pela primeira vez em 4/3/2010

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