quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Alguém para se ouvir: Stacey Kent e Roberta Gambarini

Gambarini e Roy Hargrove, no Rio
Cantoras surgem em pencas, ao contrário de cantores. Todos os dias aparece uma nova cantora na música brasileira. CéU, Ana Canãs, nomes há pouco circunscritos aos frequentadores de bares e pequenas salas de shows já estão no segundo cd. Somando as mais e as menos conhecidas na mídia, podemos, facilmente, exceder o número de dedos das mãos e dos pés. E haja ouvido e curiosidade para acompanhar. O mesmo se pode dizer das cantoras não brasileiras: para cada Amy Winehouse surgem centenas de nomes dos quais nem tínhamos alguma referência um mês atrás.

Num universo menor, o do jazz, muitas cantoras têm surgido, e quase sempre interpretando velhos standards consagrados pelas vozes negras de Billie Holiday, Sarah Vaughan e Carmen McRae, e brancas, de Anita O’Day, June Christy e Chris Connor. A persistência dessas músicas no imaginário auditivo é algo interessante. Cada um desses clássicos permite “reinvenções” surpreendente. Basta ouvir uma das mais conhecidas: Summertime (DuBose Heyward/G. Gershwin) na voz de Janis Joplin, cantora mais associada ao universo da música popular. Nos últimos anos – falo de um amplo período –, pois as intérpretes sobre quem escrevo não são exatamente noviças, tampouco “macacas velhas”. Nesse espectro em que surgiram Jane Monheit, bem conhecida dos brasileiros – já gravou o Ivan Lins –, Tierney Sutton, cantoras dos mais diversos lugares do planeta, como a brasileira Luciana Souza, a chilena Claudia Acuña e a excelente Jacintha, nascida em Cingapura, vale destacar Stacey Kent e Roberta Gambarini. Elas possuem um diferencial que as destacam das demais. Jacintha, Sutton e Monheit são afinadíssimas, mas parece que falta alguma coisa: perfeitas e tão pouco ousadas! Tinham de tomar um ácido, como Janis Joplin. E ousar não significa que devam “viajar” em scats: nem todo mundo tem a classe de uma Betty Carter ou de Ella. Maus scats apenas prestam um desserviço ao jazz.

Stacey Kent, com pouco menos de dez anos de carreira, se diferencia por algumas especificidades. Primeiro: tem aquela voz que, pejorativamente, comparam com a de Pato Donald. Na música pop é fácil de lembrar de algumas com essa característica: além de Cindy Lauper, a mais conhecida é Macy Gray e nem por isso são ruins. A de Kent não é tão “Pato Donald”, mas seu registro nos faz lembrar da saudosa e excepcional Blossom Dearie, grande pianista e intérprete de personalidade especial. Na sua quase dezena de CDs lançados, Kent carimba sua marca pessoal em interpretações inesquecíveis em velhos clássicos e em composições mais recentes.

No seu disco de estréia, Close Your Eyes já surpreende. More than You Know, a primeira faixa é a melhor amostra de sua qualidade como intérprete. Acompanhada apenas pela guitarra de Colin Oxley, os primeiros versos, “Wether you are here or yonder / Wether you are false or true / Wether you remain or wonder. / I’m growing fonder of you / Even tough your friends forsake you / Even though you don’t succeed / Wouldn’t be glad to take you / Give you the break you need…” … aí entra o refrão “More than you know, more than you know, / Man of my heart, I love you so / Lately I find you’re on my mind / more than you know.” A partir desse momento estamos apaixonados por Stacey e sua voz penetrará indelével e imperceptivelmente em nossas mentes. Seu segundo cd, Dreamsville é uma coleção de baladas, clássicos de Rodgers & Hart, dos mais “novos” Henry Mancini e Johnny Mandel, interpretadas com os mesmos acompanhantes de seu primeiro cd, um quinteto liderado por seu marido, o saxofonista Jim Tomlinson. O destaque são a guitarra de Oxley e algumas intervenções de Tomlinson tocando flauta e clarineta, instrumentos nem tão usuais no jazz. A faixa mais bela é Hushabye Mountain, de Richard e Robert Sherman, um standard “tardio” da década de 1960.

O segundo ponto que a distingue é de como os anos “formativos” na Inglaterra influenciarão em sua futura carreira. Nascida Americana, foi estudar literatura comparada na Europa, fixou residência na Inglaterra, estudou por um ano na Guildhall School of Music e casou-se com um músico. Esses “acontecimentos” estão presentes no conceito de seu mais recente cd: Breakfast on the Morning Tram. Quatro de suas composições têm letras do consagrado escritor Kazuo Ishiguro: a música título, The Ice Hotel, I Wish I Could Go Travelling Again e So Romantic. A ligação de Ishiguro e Kent não é casual: ele costuma escrever sobre jazz em publicações inglesas e seu último livro tem o mesmo título de um standard de Jay Livingston e Raymond B. Evans – Never Let Me Go. O velho mundo está em duas canções de Serge Gainsbourg, brilhantemente cantadas em francês perfeito: Ces petites rien e La saison des pluies. E de quebra, Samba Saravah, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, música celebrizada por Pierre Barouh em Um Homem e uma Mulher, filme de Claude Lelouch.

Roberta Gambarini fez o caminho contrário. Nascida em Turim, mora, desde 1986 nos Estados Unidos. Jane Monheit e Tierney Sutton, suas contemporâneas, participaram do mesmo concurso que as fez chamar a atenção dos críticos de música: o Thelonious Monk Institute of Jazz Vocal Competition. A comparação que se faz com Ella Fitzgerald não é de toda descabida. Ela canta tão “fácil” quanto Ella. A música flui como um rio que segue seu curso, sua dicção é clara e a forma de como “constroi” os scats não tem concorrentes no cenário musical de agora.

A primeira vez em que a ouvi foi numa estrada americana. Como de costume, estava com um bolo de cds comprados e louco para ouvi-los, mesmo antes de voltar ao Brasil. Não me causou “aquela” impressão. O surpreendente é que a voz de Roberta vai, aos poucos te penetrando, e de repente, te possui. O primeiro CD lançado no mercado americano começa com a música que dá título a ele: Easy to Love. Começa a capella, daí entra o baixo marcando o ritmo, entra a bateria e depois o piano; discretos scats acompanhados do baixo fecham num discreto final. Novamente, apenas o baixo e sua voz introduzem o tema de Lover Man e, sorrateiramente, o sopro aberto e sensual do sax de James Moody sinaliza a entrada do piano e de uma discretíssima bateria. Sobre todos os instrumentos reina a voz de Gambarini: em On the Sunny Side of the Street e em I Loves You Porgy, as modulações de voz revelam total domínio. Para concluir, vale também uma ouvida em No More Blues, a nossa Chega de Saudade, naquele ritmo de samba que apenas os americanos fazem e, nós brasileiros, já nos acostumamos. Como em várias faixas, a voz entra solo e depois os demais instrumentos entram. É como um prelúdio que te prepara para o que vem.

Especial mesmo é o segundo cd lançado pela EmArcy no mercado americano: o You Are There. Acompanhado apenas pelo nonagenário e legendário pianista Hank Jones, cada número prepara para um próximo nível de encanto. Acompanhar cantores é uma verdadeira arte. Nisso, Jones, como Tommy Flanagan, é mestre. Coincidentemente, por anos acompanharam a grande diva Ella Fitzgerald. E é nessa arte que a combinação de Jones e Roberta chega perto da perfeição. A voz límpida se soma à elegância econômica quase minimalista dos solos de Hank. Paralisante. Dá para ouvir o cd inteiro sentado no sofá, paradão, só curtindo.

Deve ser difícil para o artista estar sempre tentando se superar.Como para qualquer ser humano, um pouco de acomodação é necessário. Na volta da minha última viagem, em agosto, a primeira coisa que fiz ao chegar foi colocar o recém lançado So In Love. Senti um certo desapontamento. Já ouvi Day in, Day out melhor. Senti que era um CD que poderia ser classificado como um “mais um do mesmo”. Mas não é por isso que Marisa Monte é idolatrada? Roberta também tem esse direito. E depois: seu So in Love é genial e suas versões para Golden Slumbers e Here, There and Everywhere são bem originais. Na quinta vez em que ouvia a CD, estava novamente apaixonado por Roberta Gambarini.

Para referência, àqueles loucos de “possuir” os CDs em vez de, simplesmente baixá-los pela Internet, Breakfast on the Morning Tram, de Stacey Kent e You Are There, de Roberta Gambarini e Hank Jones sairam no Brasil. Não precisa importar. Com um pouco de esforço dá para encontrar. Em São Paulo, a dica é a Pop Discos, na rua Teodoro Sampaio 763. Tel. 11-3083.2564.


Roberta Gambarini canta Lush Life.




O More Than You Know, com Stacey Kent, é espetacular.

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