quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Dalva, Herivelto e Keith Jarrett

Dalva e Herivelto
Em 1987, Marilia Pêra estrelou a peça A Estrela Dalva, onde, além de representar, cantava. A tumultuada relação da cantora Dalva de Oliveira com o compositor Herivelto Martins, conhecida de todos os fãs da era do rádio foi apresentada pela primeira vez no teatro e agora, em janeiro de 2010, na televisão na minissérie Dalva e Herivelto, com roteiro de Maria Adelaide Amaral. O gosto da escritora por recriar a partir de fatos reais da cena brasileira tem tornado conhecidas figuras importantes da nossa história, abrangendo de políticos a artistas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfatti e Juscelino Kubitschek, apenas para citar uns poucos. Sem “nivelar por baixo”, Maria Adelaide “invade” os lares através da televisão e dissemina cultura sem o ranço do didatismo “realista-socialista” de alguns escritores.

A história da cantora do melhor Olhos Verdes (Vicente Paiva) e de sua relação tempestuosa com o compositor e intérprete Herivelto Martins serviu de inspiração para algumas obras definitivas do cancioneiro brasileiro. Que bela “lavação de roupa suja” é Atiraste uma Pedra: “Atiraste uma pedra com as mãos que essa boca/ Tantas vezes beijou/ Quebraste um telhado/ Que nas noites de frio te servia de abrigo/ Perdeste um amigo que os teus erros não viu/ E teu pranto enxugou// Mas acima de tudo, atiraste uma pedra/ Turvando esta água/ Esta água que um dia, por estranha ironia/ Tua sede matou/ Atiraste uma pedra no peito de quem/ Só te fez tanto bem”. Dores da perda, do desejo não consumado serviram de mote para centenas de músicas. Como “último desejo”, Noel Rosa, debilitado pela tuberculose, pede ao amigo que entregue a letra de Último Desejo à jovem dançarina de cabaré, objeto de sua paixão.

O autor de Ave Maria no Morro e Rosa transformaram suas dores em canções. Episódios marcantes são poderosos elementos inspiradores. Noel e Herivelto tinham o recurso da palavra. E para compositores e músicos que são apenas instrumentistas? Até onde esses acontecimentos podem influir em suas performances? Esta é uma pergunta que pode ser feita ao pianista Keith Jarrett.

Keith Jarrett
Keith, descontando suas idiossincrasias como recusar-se a tocar num piano que julgou “desafinado”, um Steinway, do Teatro Cultura Artística, que tinha sido levado ao Teatro Anhembi (SP), onde estava programada a apresentação, merecidamente está no “hall of fame” do século XX e, possivelmente, terá seu lugar no do século XXI. Jarrett é um músico ousado: além do jazz, tem vários álbuns em que toca Bach, Shostakovich e Handel. Com a concorrência de gênios como Glenn Gould, Sviatoslav Richter, Gustav Leonhardt e Wanda Landowska, sem querer comparar com esses grandes virtuoses, foi corajoso em botar a “cara pra bater”. E tocando, além do piano, o cravo.

Afora seus incontáveis discos em que gravou standards com seu trio – Gary Peacock no baixo e Jack DeJohnette na bateria –, todos de qualidade ímpar, Jarrett ficou conhecido por tocar sozinho peças que são improvisadas na hora, a partir do “nada”. Seu primeiro disco assim concebido foi o The Köln Concert, álbum duplo lançado em 1975. Foi o disco mais vendido de todos os tempos na categoria jazz. Causou sensação esse “modo” de Keith sentar-se ao piano, concentrar-se, e começar a tocar, produzindo sons sem temas pré-concebidos. O início do concerto de Colônia é de chapar. Até hoje, impressiona. Depois desse disco, foi ficando mais “ambicioso” e gravou um álbum triplo e, anos depois, gravou o Sun-Bear Concerts, vendido numa caixa com 10 lps. Cansou um pouco: parecia a exploração da mesma fórmula que deu certo. Olhando agora, descontando uma certa “arrogância”, e vendo que continua a produzir incessantemente, vemos que ele é genial mesmo e, fim de papo.

Sua última empreitada nos solos de improviso é um álbum triplo que saiu no meio de 2009. Chama-se Paris/London – Testament, lançado pela mesma ECM Records. Depois de Köln Concert tudo virou anticlímax, porque era tão bom que seria difícil imaginar que faria algo melhor nesse sentido. Testament chega perto. É natural que, com o passar do tempo, as pessoas se aprimorem em seus labores: “practice makes perfect”. Köln Concert foi o princípio. Jarrett sofisticou-se e seu “repertório de improvisos” ampliou-se.

A referência ao caso dos desencontros amorosos de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins não é por acaso. Jarrett, dias antes de um dos concertos, separou-se da mulher. Até que ponto esse episódio pode ter influenciado no resultado dessas apresentações?

Deve ter havido alguma influência sim. Independente das circunstâncias, ser abandonado pela esposa Rose Anne, depois de uma união de trinta anos, deve acarretar num estresse respeitável. Ao contrário dos solos dos anos 1970 e 80, em que os improvisos eram uma “espécie de viagens épicas pelo desconhecido”, segundo palavras do próprio Jarrett, este Testament e o concerto que deu no Carnegie Hall, em 2006, apresentam peças mais curtas nas quais desenvolve temas curtos e bem diferentes entre si. Deixam de ser momentos que se encadeiam em torrentes e tornam-se experimentos que “viajam” por momentos bem diversos e de andamentos em que delineiam-se as influências do bop, da música erudita, do “stride piano”, do gospel e do blues.

A primeira apresentação, que aconteceu na Salle Pleyel, em 26 de novembro de 2008, começa como se já estivesse iniciado. O primeiro número não parece um “começo”. Em Paris, seu piano é mais experimental, muitas vezes, quase atonal, como um exercício estilístico de técnica. Em vários trechos, em cima de ostinatos na mão esquerda, desenvolve os improvisos com a mão direita. Um dos pontos altos é a Parte III, um “stream” nas nas teclas dos graves e nos tons médios, dramática e melódica. Jarrett é um mestre que ouviu bastante os românticos. A Parte VII é um outro exemplo de seu talento melódico.

A segunda sessão aconteceu em 1º de dezembro em Londres. Antes da apresentação, Jarrett esteve perto de ter um colapso nervoso. Sentia-se extremamente vulnerável. Era a primeira vez em que ia tocar após saber que sua mulher estava se separando dele. Era época de natal e o colorido das ruas e o tráfego louco não se encaixavam com seu estado de melancolia; e, também, estava exausto depois da apresentação em Paris. Talvez por isso, sua apresentação em Londres foi mais “intensa”. A Parte I desse concerto inicia-se grave, dramática. A música é climática e melancólica. A Parte II é uma quebra desse “mood”. O som é nervoso, sincopado. A Parte IV é um dos momentos altos: impressionista, cheia de contrastes, que se acentuam com trinados nas notas agudas, enquanto a mão esquerda marca a música. Num certo trecho lembra a Catedral Submersa, de Debussy. A Parte V é um demonstrativo da capacidade de Keith em desenvolver um tema em longas evoluções que se assemelham a uma “passacaglia”, literalmente, com os dedos que passeiam em alternâncias quase dissonantes pelo teclado do piano. Na Parte VIII ele externa sua veia lírica. Emociona. Meio como uma forma de não embarcar na dor, alterna motivos mais melodiosos com temas em que evidencia-se sua habilidade. Com que maestria Jarrett camufla a “dor que deveras sente”. Em seus exercícios estilísticos a música parece ter saído de uma partitura de Messiaen ou de Bartók. E, por aí vai. Em alternâncias de climas Jarrett preenche o sentimento de vazio que causou a separação.

Ouçam a primeira parte do clássico The Köln Concert:





Ouçam um trecho do CD Testament (Paris, Part VII):


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