quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Thomas Quasthoff, o pequeno notável

Uma certa dose de obsessão acompanha aqueles que ficam à procura de interpretações da mesma peça por vários autores. Tenho isso pela Paixão Segundo São Mateus, as Seis Suites de Cello e o Cravo Bem Temperado (Bach). De Beethoven, por algumas sonatas para piano e as sinfonias e de Schubert, suas últimas sonatas para piano, toda obra de câmara e, principalmente, os lieder. Acontece o mesmo com a obra cantada de Gustav Mahler. São paixões antigas a Canção da Terra (Das lied von der erde), Kindertotenlieder, Rückert-Lieder e Des Knaben Wunderhorn.

Thomas Quasthoff
No início de 2000, vi uma gravação de Des Knaben Wunderhorn com regência de Claudio Abbado. Chamara-me a atenção Anne Sofie von Otter, bela cantora sueca. Para os lieder, sempre gostei do registro dos mezzo-sopranos e Anne era uma das minhas “preferidas do momento”. Não conhecia, porém, o barítono Thomas Quasthoff. Chamara-me a atenção alguém de nome alemão com traços não exatamente arianos. Bela voz. Baixos e barítonos são mais específicos que tenores e menos “populares”. A exceção era Dietrich Fischer-Dieskau, de quem tenho há muito tempo Winterreise, Die Schöne Mullerin e Schwanengesang, de Schubert, acompanhado pelo pianista Gerald Moore.

E agora, na semana passada, fuçando na Miles Discos, em Buenos Aires, no setor dos cantores líricos, encontrei o The Jazz Album: Watch What Happens, de Thomas Quasthoff. Dizem que curiosidade mata. Morro de curiosidade, o que deve ser um pouco diferente. Claro que comprei.

No jazz são poucos os barítonos. Descontando Paul Robeson, que não era exatamente um performer deste gênero, tivemos Billy Eckstine e Johnny Hartman. Não estou incluindo Joe Williams e Jimmy Rushing por razões mais ou menos óbvias. Mais recentemente a pianista e cantora Shirley Horn tinha produzido um CD de Jefferey Smith que, por sinal, tem a voz que lembra a de Quasthoff.

The Jazz Album é uma grata surpresa. Tem voz privilegiada e swing suficiente – vejam o vídeo indicado – para se defender no jazz. A produção é do trumpetista alemão Tll Brönner, que já andou passando por terras brasileiras e gravou um álbum com o nome ‘Rio’, meio bossa nova, meio Chet Baker, fraquinho, mas “ouvível”. Mas escolheu bem os músicos para este álbum: o pianista Alan Broadbent, grande acompanhante e arranjador, Nam Schwartz e a Deutsches Symphonie-Orchester Berlin. O repertório é aquele mesmo, sem surpresas. É uma coleção de standards – a exceção é You and I, de Stevie Wonder – que parece tão familiar como centenas de outros desse gênero. Nesse sentido, é um repertório “fácil”. A questão é a de se produzir um bom disco. Neste The Jazz Album… há um emocionante registro de Smile com bela orquestração da arranjadora Nam Schwartz, interpretação impecável de Hasthoff em My Funny Valentine e em What Are You Doing the Rest of Your Life, de Michel Legrand. Nesta última a mão de Schwartz pesa um pouco no excesso orquestral. O mesmo acontece com a última música do CD – Solitude, de Duke Ellington, mas nada que as estraguem. Note-se a diferença de concepção em Can’t We Be Friends, arranjada por alguém do jazz como Alan Broadbent. No geral, é um disco bem agradável e não tem “modernidades” tolas para atrair o público mais jovem como as dos “garotos” Michael Bublé e Jamie Cullum.

A onda de cantores líricos em se aventurarem por gêneros mais “populares” não é recente. Nem é preciso colocar o trio Pavarotti-Domingos-Carreras e, menos ainda, incluir interpretações de canções napolitanas, que até Enrico Caruso chegou a gravar. Limitando-se a alguns, vamos citar Jessye Norman, Elly Ameling, René Fleming, Kiri Te Kanawa e dizer que poucos não se arriscaram a explorar novos territórios comerciais. Anne Sofie von Otter não foi citada neste grupo por uma razão específica: como Quasthoff, não “empola” a voz. O que é bom e, de algum modo aproxima esses cantores dos normais. Às vezes é um pouco estranho que standards sejam cantados de modo “operístico”. Por questão de hábito, até as árias tiradas de uma ópera de verdade, a Porgy & Bess, de Gershwin, como Summertime, I Loves You, Porgy ou There’s a Boat Dat’s Leavin’ Soon for New York – que é a primeira faixa deste CD de Quasthoff e é uma apresentação de primeira de sua versatilidade e é cantada no “modo jazz” – parecem soar melhor se interpretadas “normalmente”.

Num cantor o que importa é a voz, mas estranhei um pouco o fato de nunca ver seu nome em registros ao vivo de óperas sendo tão bom baixo e barítono. A explicação veio ao “buscá-lo” na Internet: Quasthoff é uma das vítimas da talidomida, que fora receitada a sua mãe durante a gravidez. Tem pouco mais de 1,40 m de altura e seus braços não se desenvolveram normalmente, o que o impediu de ser aluno de piano na infância. Quanto mais ouço Quastoff mais me convenço de que se fosse cantor de jazz, estaria entre os melhores, tranquilamente. É fácil constatar que ele ama o jazz. The Jazz Album demonstra que ele é alguém familiarizado com esse gênero, ao contrário de alguns cantores ou cantoras líricas. Um (mal) exemplo é o álbum Haunted Heart, da mais que competente René Fleming que, mesmo acompanhada pelo pianista de jazz, Fred Hersch, frusta nossas melhores expectativas, principalmente após sua arrepiante interpretação de Summertime, de Gershwin, no Faenor Festival, no País de Gales.

Vejam e ouçam que balanço em Watch What Happens:


My Funny Valentine:



Comparem o modo de cantar Gute Nacht, do ciclo Winterreise, de Franz Schubert:

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