quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Charlotte é melhor que Scarlett

Pelo título, alguns, por antecipação discordarão. Pois, Charlotte Gainsbourg é melhor que Scarlett Johannson. Ou, ao menos, é mais inteligente. Quanto às suas carreiras como atrizes, merecem elogios. E como gosto é uma questão pessoal, aposto que tem gente que acha Charlotte mais bela que a americana. Vá lá, a filha de Jane Birkin, de quem herdou a magreza, seios pequenos, as pernas finas que começam separadas abaixo do púbis e unem-se nos joelhos, e nariz, olhos e boca carnuda do pai, o bardo Serge Gainsbourg, pode não se encaixar nos padrões mais comuns de beleza, mas tem seu charme. “Viva a diferença!”

Belo e enigmático olhar de Charlotte
Desde que Jane Birkin resolveu sussurrar em Je t’aime moi non plus, a impressão é a de que esse jeito “sensual” de cantar replicou-se. Ou será uma característica das francesas, assim como aquela voz de registro “Pato Donald” de muitas cantoras americanas? A mais famosa cantora francesa, Edith Piaf, era dramática. Pequenina e feinha, tinha voz poderosa. Juliette Greco, nem tanto. Françoise Hardy, que fez muito sucesso nos anos 1960 tinha um jeito “doce” de cantar. Pode ser considerada uma antecessora desse gênero. O fato é que hoje, parece ser a tônica dominante. Para efeito de comparação, falo das cantoras “C”: por coincidência, as que cito têm nomes que se iniciam com esta letra. Coralie Clément é uma delas. É uma espécie de Henri Salvador de saias no seu estilo “demi” bossa nova. A outra é a primeira dama Carla Bruni. Agora que está casada com o presidente Sarkozy, resolveram falar mal dela, mas é competente. É inegável o charme com que canta Quelu’um m’a dit ou La ciel dans une chambre. Se a crítica é sobre ela ser a primeira-dama da França, bom, era onde devia estar. Afinal, depois de uma carreira como modelo de sucesso, namorado Eric Clapton e ter deixado Mick Jagger de “quatro”, era o que restava para o sua brilhante carreira. Outra que canta suave é Camille, que é bela, mas é uma sub-Björk, só que cantando em francês. E agora, tem Charlotte.

Charlotte distoa. Seu cd 5:55 tem qualidades. Não se dando muita importância à voz pequena, afinada e nada excepcional, a filha de Serge herdou alguma coisa de seus pais. Inteligentemente, associou-se a Jarvis Cocker, ex-fundador da banda Pulp – sujeito de talento – e a dupla que forma a banda Air, que tem no currículo Virgin Suicides, trilha do filme do mesmo nome, dirigido por Sofia Coppola, Moon Safari, Talkie Walkie e Love2. A atmosfera característica da dupla “acolchoa” a voz de Charlotte. Tel que tu es é uma bela canção. Tem um piano combinando com sons de guitarra, glockenspiel e uma orquestra de cordas de extremo bom gosto. Beauty Mark é outra que merece o adjetivo de belo. É climática e o arranjo orquestral simples faz belo conjunto com a voz de CG. Nas seguintes, Little Monsters e Jamais e Night-Time Intermission, a voz pequena de Charlotte é o perfeito encaixe para as aventuras atmosféricas Air. Everything I Cannot See, começa com um violão e um piano meio “flamboyant”.  A primeira estrofe não é cantada. É “falada” – não uso a palavra “declamada”, que não combina a sua delicadeza. É mais dramática. Certamente tem o tom mais característico das composições de Jarvis Cocker. Morning Song é a única em que Charlotte aparece como coautora junto aos seus parceiros. É um belo final. Depois que surgiu o CD inventaram de interromper a música e, quando a imaginamos terminada, continua. Depois de um silêncio de um minuto, retorna, mais agitada.

No começo deste ano foi lançado o terceiro CD de CG. O primeiro foi lançado quando tinha 15 anos, mas não se deve levá-lo em consideração: tinha a “mão-de-gato” do pai, e era uma adolescente. Hoje está com 38 anos. Vai aí um gap de mais de 20 anos. O que conta é que, desde 5:55 pode ser considerada uma cantora de fato. Inteligentemente, como foi no álbum anterior, escolheu bem o seu parceiro: o cantor e compositor americano Beck. Daí, está certo que não há santo que faça milagre com coisa ruim. Conclusão: mais um bom disco. Desde já, este CD contém uma séria candidata a ser uma das “10 mais” do ano: Heaven Can Wait. A letra é “sacadíssima”: “Heaven can wait and hell’s too far to go/ Somewhere between what you need and what you know/ And they’re trying to drive that escalator into the ground.” “O céu pode esperar e o inferno é tão longe/ Um lugar entre o que você precisa e o que você conhece”: genial. Me and Jane Doe tem um sabor meio country/folk com um backing que parece uma intervenção vocal interplanetária dos Beach Boys. Vanities é um luxo: instrumentação de “viagem”, meio “progressiva”. É o momento de calma que antecede Time of the Assassins.

Trick Pony (não é o One-Trick Pony de Paul Simon), meio blues/rock, tem o “estilo Beck” na parada. A marcação leve/pesada é cheia de sutilezas, de distorções discretas de guitarra e a voz doce de CG. ‘Dandelion’ é outra. Na marcação do baixo e da bateria, Beck distribui cacos de sons orquestrais e um acorde ou outro de guitarra. Tudo se encaixa tão bem! Voyage, que é cantada em francês, tem uma batida parecida, que se interrompe em ataques de cordas, “fundos” de contrabaixos tocados no arco em contraste com uníssonos das cordas médias. Dandelion e Voyage estão entre as melhores do álbum. Looking Glass Blues tem uma pegada mais rock com presença mais forte das guitarras distorcidas. É a faixa bônus do CD. Não soma muito.

No verão de 2007, viajando de férias nos Estados Unidos, Charlotte sofrera uma queda fazendo esqui aquático. Seis meses depois foi ao médico por sentir dores de cabeça frequentes. Submetida a um IRM – acrônimo em francês de “magnetic ressonance imaging” (MRI) –, foi constatado que tivera uma hemorragia interna na ocasião e era sorte que estivesse viva. As duas primeiras músicas referem-se a esse episódio: Master’s Hands e IRM. A terceira é Le chat du Café des Artistes. É a segunda melhor do disco. A voz pequena se equilibra num arranjo orquestral meio fantasmagórico e grandioso. É Beck. In the End é uma música charmosa, quase uma canção de ninar, o som do glockenspiel nos remete àquelas caixinhas de música.

A grande vantagem de Charlotte sobre Scarlett é a de que “esquecemos” que ela é atriz, enquanto, no caso da segunda, não conseguimos deixar de pensar que é uma atriz cantando. Como Marilyn Monroe, o que não é nada mal também.

5:55.



Heaven Can’t Wait, com Beck.


Esse texto foi publicado em 4/2/2010, originalmente.

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