quarta-feira, 25 de março de 2015

Opções geniais para se ouvir Nature Boy

ahbez é o barbudo
O registro de Nature Boy com Kurt Elling recomendado anteriormente é bem recente. Outros três registros novos que relaciono são interessantes de serem vistos/ouvidos. Uma delas abre o filme Moulin Rouge, de Baz Luhrman, que junto com Chicago, de Rob Marshall são os dois melhores musicais da década passada. Esta versão de David Bowie é muito boa, como a maioria das coisas que faz, imprimindo sempre a sua marca. A outra, bem diferente – não vou dizer por quê –, que não existe em CD, é a de Jamie Cullum. Imperdível. A terceira é de uma cantora muito boa, que merece ser “buscada” na Internet para quem não a conhece: Lizz Wright, sobre quem pretendo falar futuramente. Existe uma versão no YouTube que deve ser vista (http://bit.ly/G9jbj).

Além das versões cantadas, existem alguns registros apenas instrumentais. Para os que desejam as mais tranquilas, recomendo a de Art Pepper, grande alto-sax, que teve uma carreira um tanto atribulada devido ao seu problema com drogas. Ela está no álbum Straight Life’e tem como sidemen o pianista maior Tommy Flanagan, Red Mitchell no baixo e Billy Higgins na bateria. Outra muito boa, que está em Blue Moods, é a de Miles Davis. O trumpete em surdina tem aquele tom melancólico é apenas dele. Acompanhado por Charles Mingus no baixo, o destaque é o vibrafone de Teddy Charles. A do guitarrista Joe Pass – esse é outro que andou um bom tempo preso por conta de consumo de drogas pesadas – e do trombonista “mais rápido do oeste” J.J. Johnson é excepcional. J.J. inicia com o tema em “surdina” e Joe a finaliza com um rápido solo de sua guitarra semiacústica fenomenal. A música é curta e faz com que fiquemos com aquela sensação de que “tiraram o doce da boca da gente”.

A de John Coltrane – a que designaria como a versão “amalucada” – é uma longa faixa de oito minutos. Ele apresenta o tema no sax tenor sobre uma colchão bem caracteristicamente coltraneano com o piano “cheio de notas” e arpejado de McCoy Tyner, notas de baixo no arco e a bateria brilhante e enérgica de Elvin Jones. Após um começo dramático e lento, Coltrane se lança naqueles solos contínuos, ricos e intensos. No fim da faixa, Art Davis faz um breve solo meio atonal no arco. Tudo que é dele é imperdível.

Temos uma versão bossa nova, de outro sax tenor do primeiro time, mas menos conhecido. Falo de Zoot Sims. Esta faixa está no álbum The Bossa Nova Sessions. Muita gente, na década de 1960 sucumbiu ao gênero mais exportado do Brasil. Não foram apenas Charles Byrd e Stan Getz.

A versão que designaria de “desconstruída” é a do pianista Jacky Terrasson. Sua maior característica é a de nunca começar com o tema: lá no meio da música você fica sabendo o que ele está tocando. Muito bom.

Todos os CDs citados não foram prensados no Brasil. Para aquele que deseja tê-los a opção é importá-los. A outra é a de procurar pela Internet, fazer um download “piratão” ou comprá-las pelos sites de venda de música.

Bela versão de Bowie:

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Interpretação “moderninha” de Jamie Cullum:

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Ryuichi Sakamoto e as cerejeiras em flor

O sonho secreto de Trudi era conhecer o Monte Fuji
Os cinéfilos, provavelmente, devem lembrar-se do filme Homens, de 1985, de Doris Dörrie na direção. Depois de muito tempo longe do circuito nacional, chegou-nos Hanami - Cerejeiras em Flor. A estrutura de Hanami é linear, para infelicidade dos que acham a descontinuidade e a desconstrução o máximo. É uma bela história de amor de uma casal da “melhor idade” – já inventaram tantos eufemismos para a palavra “velho” nesses tempos politicamente corretos! Esta é a mais recente, que sucede a “terceira idade” – Trudi (Hannelore Elsner) e Rudi (Elmar Wepper). Depois da morte da mulher, Trudi descobre que ela nutria uma paixão, que nunca revelara, pela cultura japonesa. Esse processo de descoberta é o parte da revelação para o marido daquela que passou tantos anos ao seu lado vivendo uma “vidinha” numa pequena cidade alemã e parecia tão circunscrita a tancanhêz desse pequeno universo. Primeiro, é levado pela namorada de sua filha a assistir uma apresentação de Tadashi Endo, um dos mestres do butoh, na capital alemã. Depois, mexendo nas coisas da mulher, descobre que ela conhecia o teatro butoh e colecionava imagens do Monte Fuji.

Rudi vai ao Japão – ele, que nem visitar os filhos em Berlin queria – e visitar o Monte como parte de “viver a vida” não vivida de Trudi.

Chama a atenção não só o enredo, em que o butoh não aparece por mero acaso – essa arte surgida depois da Segunda Grande Guerra é definida como a “dança da escuridão” –, pois Dörrie trata da morte, mas também as belas músicas que ouvimos nesse filme. Uma delas é Asadoya Yunta, e a outra é Chinsagu no Hana, canção folclórica da região de Okinawa, que fazem parte de um álbum de Ryuichi Sakamoto, lançado em 1990.

Sakamoto é bem conhecido dos brasileiros. Se o nome não soar tão familiar, uma lembrança: trabalhou como ator em Furyo – Em Nome da Honra (Furyio), de Nagisa Oshima. Compôs a trilha sonora de O Último Imperador e teve a música Bibo No Aozora incluída no filme Babel, de Alejandro Iñárritu. Quem viu Furyo deve se lembrar da música-tema Merry Christmas, Mr. Lawrence, A versão com letra, que se chama Forbidden Colours, é belíssima, na voz de David Sylvian. Vale a pena conhecer.

O som de Sakamoto é uma mescla de influências da música tradicional japonesa com a de outras culturas, inclusive a brasileira: gravou dois álbuns – Casa e A Day in New York – com Jacques Morelenbaum e a cantora Paula Morelenbaum. Desse universo conhecido como “world music”, Sakamoto se destaca pela modernidade e de como explora a instrumentação eletrônica – às vezes, um tanto indigesta ao explorar e mimetizar demais influências do hiphop, do rap e do eletropop –, mas sempre com resultados instigantes e originais. Na busca “world”, tem como parceiros músicos de todos os continentes.

Um disco, Beauty, que está entre os melhores que gravou, serve de amostra da versatilidade e talento em saber misturar as mais diferentes linguagens étnicas. É uma ousadia misturar instrumentos orientais com os ocidentais, percussão africana, indiana e japonesa e vocais em sua língua de origem com o inglês e até com o português. As citadas acima, Asadoya Yunta, Ao no Aozora e Chinsagu no Hana fazem juz ao título Beauty. São belíssimas, emocionantes e inesquecíveis. A parte “brasileira” cabe ao americano nascido em Pernambuco, Arto Lindsay na composição ‘Rose’: canta em inglês e perfeito “português pernambucano”. Em outra música, dentre as “excentricidades” ouvimos uma mistura de violino do indiano Shankar, as dissonâncias da guitarra de Lindsay, sons do grupo africano Farafina e vocais de Youssou N’Dour e em outra, participação brasileira do percussionista Naná Vasconcelos. Haja “world” para Sakamoto! No campo das interpretações idiossincráticas, registre-se a versão de ‘We Love You’, de Mick Jagger e Keith Richards, electropop percussiva com a participação mais que especial de um dos fundadores do Soft Machine, Robert Wyatt, nos vocais e backing de ninguém nada menos que o ex- Beach Boys Brian Wilson. No repertório das “belezas” desse álbum, não podemos deixar de citar Diabaram, com vocais “dilacerantes” do senegalês Youssou N’Dour (é, realmente o mundo está cada dia mais “worldy”: alguém imaginaria um japonês e um africano juntos?). É um dos grandes momentos dessa verdadeira alquimia chamada música que poucos sabem fazer.

Não deixem de ver o filme de Doris Dörrie e não deixem de ouvir Ryuichi Sakamoto. Pode começar com Forbidden Colours, cantada pelo grande David Sylvian.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

As surpresas do “jukebox” de Cat Power

Em maio de 2008 foi lançado o segundo cd de Cat Power cantando covers. Começa arrasando com uma versão de New York, New York (Fred Ebb/John Kander), simplesmente, estupenda. O excesso de adjetivos para elogiá-la será pouco para o quanto ela deixa sua marca de originalidade em suas interpretações. Ramblin’ Man, de Hank Williams, entra em seguida, quase como uma continuação da primeira faixa. Ao contrário de The Cover Records, em que a instrumentação se resume ao piano, ou ao violão ou guitarra, neste temos intervenções de guitarra, de pianos elétricos, além da “cozinha” baixo/bateria.

Intérprete especial, Chan é ótima compositora. Seus álbuns anteriores são a confirmação dessa sua qualidade. Metal Heart, terceira faixa, é maravilhosa e tinha sido lançada em Moon Pix. É melancólica, “pra variar”, como alguma dor congênita, e é dramática sem derramar-se. Silver Stallion é uma canção de sabor folk, calma. Em Aretha, Sing One for Me um órgão Hammond e um piano elétrico “levantam’ o astral, meio rhythm’ blues. Lost Someone, de Bobby Byrd, Lloyd Stallworth e James Brown, com uma guitarra simples e a bateria marcando a base rítmica é a “moldura” para a voz levemente anasalada da cantora. Lord, Help The Poor & Needy, só com a guitarra, Chan lamenta-se na tonalidade “bluesy light”.

I Believe in You, de Bob Dylan, é energica. Não lembro da interpretação original do americano, mas as inflexões vocais dylanescas são inconfundíveis nesta versão. ‘Song to Bobby’ é a outra original de Cat. Não podiam faltar as músicas “down”, que se encaixam perfeitamente ao seu “jeito” único de cantá-las. ‘Don’t Explain’, original de Billie Holiday e Arthur Herzog Jr. é um dos ponto altos do álbum. A outra é Blue, clássico de Joni Mitchell, bela composição do início de sua carreira da canadense.

Quando foi lançado, houve uma edição especial com um segundo CD. A primeira, I Feel, de Thomas/Dorsey/Gray/Carter/Virgil, só com o piano é Cat Power puro: é aquela sensação de desproteção. Breathless, de Nick Cave, é outro exemplo. O “lado escuro” de Cave combina bem. A guitarra meio Ry Cooder, meio Marc Ribot e os acordes de violão “rastejam”. A canção mais impressionante de bela, no entanto, é Angelitos Negros, de Manuel Alvarez Maciste, que musicou um poema do venezuelano Andres Eloy Blanco. Uma guitarra e a batida da bateria “a la” Bolero, do franco-basco Maurice Ravel, imprimem um clima espanhol em “crescendo”. Descontemos sua dicção na língua espanhola. Ela é perfeita. She’s Got You, de Hank Cochran, é a última faixa. É boa, mas fica eclipsada com a beleza triste de Angelitos. “Siempre que pintas iglesias,/ pintas angelitos bellos,/?pero nunca te acordaste/?de pintar un ángel negro.”: é a última estrofe da música.

Para comparação:

Frank Sinatra, New York, New York:



Cat Power, New York, New York:



Veja e ouça Angelitos Negros:

terça-feira, 9 de agosto de 2011

O fantasma de Clifford Brown

O “careta” Clifford Brown
Na mesma época em que tinha comprado os dois volumes que compõem A Volta ao Dia em Oitenta Mundos, referência de Julio Cortázar sobre um título de Jules Verne, estavam sendo lançados alguns álbuns duplos destacando alguns nomes do jazz pela PolyGram. De capa branca e ilustrações em tinta marrom, eram suficientemente caros para os bolsos dos universitários que tinham que se virar com mesadas “na conta”. Até essa data, meados da década de 1970, eram raros os lançamentos de jazz no Brasil, situação parecida à de agora, com o diferencial de que a Internet e a importação direta trouxeram facilidades para a aquisição de títulos não lançados no País.

Na página 109 do tomo I de A Volta…, da edição em espanhol da Editora Siglo Veinteuno – na FAU-USP, a Ciça, arquiteta formada pela UnB, montou uma “banquinha” de livros de literatura e de arquitetura em espanhol – Cortázar falava desse até então desconhecido, para mim, Clifford Brown: “Como Bird, como Bud, he didn’t stand the ghost of a chance”. O autor fazia um jogo de palavras com o título do standard composto por Victor Young, com letra de Bing Crosby e Ned Washington, de 1932, e os relacionava à morte de outras duas figuras do jazz: o pianista Bud Powell e o sax-alto Charlie Parker.

Ao contrário desses dois, o trumpetista Clifford era “careta”. Era um certinho, enfim, mas de um talento estupendo. Parker morreu antes dos 40, vítima dos excessos da droga e do alcool. Powell, apesar de “un poco loco”, decorrente – dizem – de uma surra que levara da polícia, e lhe acarretara transtornos de ordem mental – ficou internado por um ano sendo tratado com eletrochoques –, foi brilhante pianista e fez parte do lendário show no Massey Hall, Toronto, com Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Charles Mingus e Max Roach, em 1953. Morreu relativamente cedo – pouco mais de 40.

Nos anos 1950 reinavam o trumpete de Miles Davis e o do atrevido Dizzy Gillespie. Brown surgiu nesse cenário e logo se destacou como, se não o melhor, tão bom quanto os outros dois. Miles era o cara do sopro sem vibrato, dos registros médios, e se destacaria por estar no lugar certo e na hora certa. Estaria entre os gestores do bebop e dentre os que criariam o cool jazz. Clifford surgiu como um furacão. Se estivesse vivo, certamente, estaria liderando as listas dos melhores em seu instrumento. Além do poder de invenção harmônica era dono de um sopro que sabia ser doce e agressivo, atingindo as notas mais altas do trumpete sem “gritar”.

Não é possível se prever o que teriam sido os percursos de Jimi Hendrix, Janis Joplin, de Jim Morrison ou do trumpetista Fats Navarro, sua grande influência – morreu antes de completar 27 anos de idade, vítima da tuberculose e da heroína –, e também de Clifford. Mas Brown teve uma carreira fulgurante num tempo em que Miles e Dizzy Gillespie estavam na linha de frente.

A ascensão de Clifford foi algo que lembra – desculpem se acharem a comparação um pouco fora de contexto – à do espetacular astro do soul Otis Redding, morto em um acidente no próprio avião, aos 26 anos. Clifford ia fazer 26 – coincidência ou não, Hendrix, Morrison e Joplin, com 27, um a mais – e ambos estavam no topo e, certamente, avançariam muito além. Redding morreu sem ter visto (Sittin’ on) The Dock of the Bay atingir o primeiro lugar das paradas. Brown gravava um disco melhor que o outro pela EmArcy. Numa noite chuvosa de junho de 1956, a caminho de Chicago, onde fariam uma apresentação, a mulher do pianista Richie Powell, que dirigia o carro, perdeu o controle e derraparam. Resultado: três mortos.

Max Roach, um dos pioneiros do bebop e dos maiores bateristas da história, já era figura de proa no jazz quando surgiu Brown. Mesmo assim, ao formarem a banda, deixou que Brown tivesse seu nome em primeiro lugar. A bateria enérgica e ritmicamente limpa combinaram perfeitamente com seu trumpete. E não seria despropósito algum dizer que Roach foi o par ideal de Brown. Juntos, com o belo sax tenor do underrated Harold Land, do pianista irmão menor de Bud e igualmente talentoso, Richie Powell, e George Morrow no baixo, formaram uma das mais integradas bandas do jazz. Eram excepcionais nas músicas uptempo, em que a bateria de Roach brilhava e que, nas baladas, Land – como em Darn That Dream –, Powell e Clifford despejavam emoção da mais pura qualidade.

Algumas músicas ficaram associadas às interpretações de Brown e Roach: Delilah, do mesmo Victor Young, que compôs I Don’t Stand a Ghost of a Chance With You – que tem um belo solo de Richie Powell e lembra seu irmão Bud –, Parisian Thoroughfare e Jordu, de Duke Jordan. Nem é preciso dizer a mesma coisa de The Blues Walk, Daahoud e Joy Spring: são composições do trumpetista.

Segundo Julio Cortázar, Brown “inventa uma ilha do absoluto na desordem, onde ele e tantos outros estamos mortos”. Talvez pensasse assim Cortázar quando se arriscava a “ser” Clifford ao tocar amadoristicamente seu trumpete.

Beleza pura de uma das formações clássicas: Brown e o baterista Max Roach.




Esse texto foi publicado e escrito em 5 de abril de 2010

terça-feira, 26 de julho de 2011

A beleza dramática do piano de Mal Waldron

Waldron e seu inseparável companheiro, o cigarro
Uma amiga, faz tempo, quando soube que eu ia viajar, pediu-me que trouxesse um produto da Clinique chamado “Dramatically Different Mosturizing Lotion”. Achei o nome um tanto forte e sugestivo, Ela não estava “dramaticamente estragada” e nem hoje está. O nome ficou na lembrança. Fato é que lembrei disso ouvindo o pianista Mal Waldron.

No início da carreira, tocou com o baixista Charles Mingus e com Billie Holiday em seus últimos dois anos. Rotulam-no como um representante do free jazz, mas não dá para classificá-lo nesse gênero particularmente. Quando ele passou a tocar profissionalmente, dominavam o cenário musical novaiorquino o bepop e o hard bop e é natural que tenha absorvido parte dessas linguagens.

Waldron, por excesso de trabalho e pelo consumo de algumas drogas ilícitas, sofreu um colapso nervoso e ficou afastado da cena musical de 1963 a 1969. O primeiro disco da “retomada” – Free at Last’ – foi também o primeiro da gravadora ECM, do alemão Manfred Eicher, que se tornaria conhecida por abrigar Keith Jarrett e por revelar talentos europeus “vindos do frio“, principalmente, da Escandinávia. Mal, a partir daí, gravou bastante, muita coisa em parceria com cantoras – Jeannie Lee, Abbey Lincoln, Judie Niemack –, e instrumentistas como David Murray, o avant-garde Steve Lacy e o baixista David Friesen, quase sempre com resultados muito bons. Seu piano começou a aparecer mais, em comparação às gravações das décadas de 1950/60: seus parceiros, geralmente, apareciam mais que ele. No belo disco The Quest, mesmo sendo as músicas de sua autoria, destacavam-se mais os solos do saxofonista e clarinetista Eric Dolphy e de Ron Carter tocando cello – quem tocava baixo era Joe Benjamin.

Não se pode considerar Waldron um improvisador por excelência, como Oscar Peterson ou Art Tatum são ou eram. Sua importância como intérprete se vale menos de “pirotecnias improvisatórias” e mais pelo modo personalíssimo de tocar e desenvolver os temas. Willow Weep for Me, que não é de sua autoria e está em Free at Last, é um bom exemplo: Waldron fica quase que tão somente na melodia, sem desdobrá-la em improvisos. Sua qualidade maior está em criar sonoridades diferentes. Um pouco como os “bops”, a tônica não está na melodia. A repetição dos motivos, a forma percussiva que ataca as teclas, sem floreios e o uso de poucas notas, dão um tom sombrio, “dramaticamente diferente”. Waldron “martela” nervosamente o teclado, porém, quando a música pede, toca com enorme delicadeza, sugerindo climas de paz, melancolia e um certo “lirismo impressionista”.

Foi lançado no meio de 2008 pela JustinTime um cd que é, provavelmente, a última gravação de Mal. Silence – duo do saxofonista David Murray e o pianista – foi gravado em Bruxelas, última morada de Mal, em 2001. Ele, depois do colapso nervoso, mudou-se para a Europa, vivendo, inicialmente na Alemanha e depois fixou residência em Bruxelas, onde morreu em dezembro de 2002. Dois anos anos antes apresentara-se no Chivas Jazz Festival. Ficara hospedado num flat na região dos Jardins e, no dia seguinte a sua apresentação, almoçava tranquilamente com outros músicos que estavam no Brasil, no Esplanada Grill. Um deles era Don Byron que, pela “cara-de-pau” de meu amigo Takashi Fukushima, viemos a conhecer. Mal fumava toneladas de cigarros. Uma amiga, fumante também, viajou no mesmo voo em que voltava para Bruxelas. Coincidência: em Roma, uma das escalas, encontraram-se… na área dedicada aos fumantes.

Murray tornou-se conhecido tocando no grupo “quase free” World Saxophone Quartet. Antes disso, em 1976, tinha lançado Low Class Conspiracy . Em seu primeiro disco sob seu nome, apresentava maturidade surpreendente para um jovem de vinte anos. Desde então, gravando solo, duos, trios, quintetos, octetos e bigbands, tem perto de uma centena de discos lançados. Mais surpreendente que a prolixidade é a de como consegue manter um bom nível de qualidade e a facilidade com que transita nos estilos jazzísticos, dos mais tradicionais aos mais experimentais.

A primeira faixa de Silence é uma antiga composição de Waldron em parceria com o baterista Max Roach – Free for C.T. –, em que David toca clarinete baixo. Nesse instrumento é capaz de atingir desde as notas mais graves às mais agudas com precisão impressionante e uma “alma” apenas comparável à do gênio Eric Dolphy, falecido precocemente em 1964. Murray, no sax-tenor, seu principal instrumento, sem dúvida, é um dos grandes virtuoses da atualidade. O início de Free… é uma pequena amostra das características de Waldron: notas e acordes que se intercalam entre os graves e médios, que se repetem e “potencializam” a força desta composição. O acompanhamento para o clarinete baixo é “seco” de acordes que se destacam mais pela forma sincopada que toca. O piano é majestoso, não é um simples acompanhante. Ele e o clarinete têm o mesmo peso até quando o solo é de Murray.

O “mood” do disco é de interpretações que realçam as características do piano de Mal: à exceção de Silence, composição de Murray – que é um belo “showcase” de seu estilo no sax-tenor – e Jean-Pierre, da última fase de Miles Davis, o restante é de baladas. Delas, a mais bela é a do clássico de Waldron – Soul Eyes –, também a faixa mais longa do CD, em que o pianista executa um solo belíssimo. É a outra, além de Free for C.T., em que Murray toca clarinete baixo. Inicia-se com um solo de quase sete minutos e é uma bela amostra da maestria de Murray como improvisador. Nos dois standards, I Should Care, de Sammy Cahn, Alex Sttordahl e Paul Weston, e All Too Soon, de Duke Ellington, os dois “arrasam”; a primeira, principalmente, é “dramaticamente” impecável.

Ouça o piano dramático em sua Seagulls of Kristiansund, aqui acompanhada pela fantástica Jeanne Lee.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Larry Klein: bons produtores, bons produtos

O produtor e baixista Klein
Não dá para ignorar a importância da figura do produtor musical. Não é à toa que o britânico George Martin era considerado o “quinto beatle”: é um reconhecimento de sua influência sobre o som do quarteto formado por John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Star. No Brasil, nos anos 1980, o ex-baixista dos Mutantes, Liminha, sob alguns aspectos, pode ser considerado um dos artífices da explosão do pop/rock, produzindo Titãs, Chico Science & Nação Zumbi, Barão Vermelho, Gilberto Gil, Lulu Santos, Ritchie e outros mais. Às vezes, a mão do produtor pode anular o produto. É o caso de Lincoln Olivetti, muitas vezes acusado de impor um estilo pasteurizado que igualando o trabalho e repertório de artistas díspares como Gal Costa, Wando, Gilberto Gil e Rita Lee.

Por alguma coincidência, um dos grandes produtores da atualidade, começou tocando baixo, como o brasileiro Liminha. Em 1982, Larry Klein entrou para a banda que acompanhava a canadense Joni Mitchell. Tornaram-se parceiros na música e na vida. Produziu com Mitchell uma boa leva de cds muito bem recebidos pela crítica e representou uma mudança de rumo em sua carreira, reaproximando-a do pop. Mesmo com o fim do casamento, em 1994, ano do lançamento de Turbulent Indigo, continuou a colaborar com ela em Both Sides Now, gravado com orquestra. Aproveitando o formato de Both Sides, gravaram o duplo Travelogue, que contém vários sucessos antigos de Mitchell. O bom produtor é aquele que sabe realçar as qualidades dos seus intérpretes. (sobre Joni Mitchell, leia: http://bit.ly/itpMsv ,  http://bit.ly/k81URE , http://bit.ly/kmauYk , http://bit.ly/eX6YHX , http://bit.ly/md969w)
Além dela, Klein produziu os últimos álbuns de Madeleine Peyroux, Careless Love (2004) e Half the Perfect World (2006) e Bare Bones (2009). Peyroux tinha gravado seu primeiro disco Dreamland em 1996. Imediatamente, por causa do timbre muito parecido ao de Billie Holiday, ganhou projeção. E sumiu. Reapareceu em grande estilo realizando um álbum impecável. Seria a mão de Klein? (sobre Peyroux, leia: http://bit.ly/hEOMMehttp://bit.ly/lYZbSu)

Dentre outros, produziria também o trumpetista e cantor Till Brönner – uma espécie de carbono de Chet Baker piorado – em Oceana (2006) e Rio (2008) – este último, lançado no Brasil. Na minha opinião – conheço apenas Rio – a mão de Klein é primordial para que o disco seja razoável. Juntou uma penca de convidados ilustres: Milton Nascimento, Vanessa da Mata, Luciana Souza, Annie Lennox, Aimee Mann, Melody Gardot e Kurt Elling. Bom, com um time desses, qualquer curioso se arrisca a conhecer Till Brönner. Foi o que aconteceu comigo.

Larry Klein tem mostrado competência como produtor, principalmente com cantores e cantoras. Em 2007, produziu o CD The New Bossa Nova, de Luciana Souza. Por coincidência, com a mesma “química” que ocorrera com Joni Mitchell: os dois, atualmente, são parceiros na música e na vida.

Para frisar de como o trabalho de um produtor pode ser um diferencial, basta comparar o primeiro CD de Melody Gardot com o segundo, My One and Only Thrill, produzido por ele (sobre Gardot, leia http://bit.ly/eXhQSQ). E fica a expectativa se não acontece no futuro um novo casamento.

Joni Mitchell canta Sex Kills.




Luciana Souza canta Saudade da Bahia.



Melody Gardot canta Baby, I’m a Fool: http://youtu.be/4Eb651s_o1Q (maravilhoso)

Publicado em 27/10/2009

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Keith Jarrett em São Paulo

Conversar com meu amigo Alberico Cilento é um dos bons prazeres que alguém pode ter. Poucos conhecem mais música do que ele. Não conhece apenas o jazz. Gosta de qualquer gênero musical, contanto que seja de boa qualidade. Com ele converso sobre música erudita, jazz e até bolero. Posso também trocar ideias sobre arquitetura, artes plásticas, cinema, enfim, sobre qualquer coisa que esteja relacionada à arte. Até onde pude pegar, seus ídolos são o pianista Erroll Garner e o arquiteto Frank Lloyd Wright. Tinha enviado o link de alguns textos, dentre eles, o ‘Dalva, Herivelto e Keith Jarrett’ (http://bit.ly/mGWeDT). Recebi um e-mail com alguns comentários que reproduzirei com minhas letras. Alberico inicia os comentários com Keith Jarrett e chega até ao pianista Gogô, que é seu amigo, e Arthur Rubinstein, pessoas de quem falei em outros textos.

Na ocasião em que Keith Jarrett veio ao Brasil, não tenho a certeza se foi no ano de 1989, e apresentou-se no Rio de Janeiro, em Salvador e São Paulo. Estavam programadas duas apresentações de Keith com seu trio Gary Peacock no baixo e Jack DeJohnette na bateria no Palácio das Convenções, Anhembi. Alberico foi primeiro. Havia chegado mais cedo e notou que afinavam o piano. Aconteceu o show, mas parece que Keith não gostou de nada: do lugar, que considerou inapropriado e, principalmente, do piano. Para a apresentção do dia seguinte, resolveram levar o Steinway do Teatro Municipal (disse no texto que era do Teatro Cultura Artstica, mas como confio mais na memória alheia).

Segundo Alberico, a pianista Eliane Elias, que servia de porta-voz, comunicou que Jarrett não poderia tocar naquele piano, mas que, em considerção ao público, faria a apresentção. Mas que, se não fosse resolvido o problema do piano, não se apresentaria no dia seguinte. E foi o que aconteceu.

Alberico conta também que, quando ouviu em Washington DC, Jarrett interrompeu a apresentação uns 40 minutos depois de iniciado e chamou o afinador para ajustar uma nota. Seu rigor o mesmo de tantos virtuoses. No quesito de estrelismo ou de frescura. Até o pianista brasileiro Nelson Freire, que não parece nem um pouco antipático, visto reclamando do Steinway da Sala São Paulo, no documentrio dirigido por João Moreira Salles. Diz, inclusive, algo como aquele piano não gosta de mim.

Evidente que, para os virtuoses, qualquer detalhe, como algum problema de afinação, a sonoridade que lhe parece estranha, afetam suas performances. Alguma coisa de errado, por pequena que seja, pode resultar em um desastre. Alberico ressalta em seus comentários uma afirmação de Hermeto Pascoal em que diz que o som que importa o músico, não o instrumento. Tem sua pertinência, porque Keith Jarrett persegue a sonoridade e Hermeto, o som. Em um dos primeiros festivais de jazz que aconteceu na década de 1970, no Palácio das Convenções, em São Paulo, Hermeto fazia sua estupenda apresentação. O piano elétrico para de funcionar e ele o joga ao chão. Típico de Hermeto, que castigava os instrumentos com uma energia explosiva. Nessa noite, fez um dos melhores shows a que assisti até hoje. O taciturno Stan Getz fez sua participação no sax tenor, Chick Corea entrou no palco percutindo dois pedaços de madeira e John McLaughlin, timidamente, entrou tocando uns riffs na guitarra. Hermeto começou a tocar um frevo no piano elétrico, se não me engano. Em alguns segundos, McLaughlin já tinha captado a música e fez um impressionante solo em ritmo de frevo. Foi uma reunião rara que atravessou a madrugada paulista que foi adrenalina pura.

Os pianos, após o transporte e mudança de ambiente, não afinam nem a pau. Ana Maria Lobo, que foi dama de companhia e secretária de Guiomar Novaes, contou a Alberico que ela ia fazer uma apresentação em Baltimore e não tinha gostado do piano. Disse a Ana que entrasse em contato com a fábrica da Steinway e pediu que providenciassem um outro até o dia seguinte. Guiomar, a cada cinco minutos lembrava e perguntava se tudo estava de acordo. Depois de tudo acertado foi dormir. Quando chegou o piano, Ana foi logo acordá-la e perguntou se não queria ir até o teatro testá-lo. Diante de sua não-reação, insistiu. Guiomar respondeu: Calma, minha filha, o piano viajou e está cansado, ele precisa descansar. Depois a gente vê. E voltou a dormir.

Os pianos têm alma, são sensíveis e, pelo jeito, são um tanto neuras. E além do mais, nenhum Steinway é igual a outro Steinway.

Veja trecho do documentário sobre Nelson Freire, dirigido por João Moreira Salles, em que fala de Guiomar Novaes:




Republicação de texto postado pela primeira vez em 11/2/2010