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Waldron e seu inseparável companheiro, o cigarro |
Uma amiga, faz tempo, quando soube que eu ia viajar, pediu-me que trouxesse um produto da Clinique chamado “Dramatically Different Mosturizing Lotion”. Achei o nome um tanto forte e sugestivo, Ela não estava “dramaticamente estragada” e nem hoje está. O nome ficou na lembrança. Fato é que lembrei disso ouvindo o pianista Mal Waldron.
No início da carreira, tocou com o baixista Charles Mingus e com Billie Holiday em seus últimos dois anos. Rotulam-no como um representante do free jazz, mas não dá para classificá-lo nesse gênero particularmente. Quando ele passou a tocar profissionalmente, dominavam o cenário musical novaiorquino o bepop e o hard bop e é natural que tenha absorvido parte dessas linguagens.
Waldron, por excesso de trabalho e pelo consumo de algumas drogas ilícitas, sofreu um colapso nervoso e ficou afastado da cena musical de 1963 a 1969. O primeiro disco da “retomada” –
Free at Last’ – foi também o primeiro da gravadora ECM, do alemão Manfred Eicher, que se tornaria conhecida por abrigar Keith Jarrett e por revelar talentos europeus “vindos do frio“, principalmente, da Escandinávia. Mal, a partir daí, gravou bastante, muita coisa em parceria com cantoras – Jeannie Lee, Abbey Lincoln, Judie Niemack –, e instrumentistas como David Murray, o avant-garde Steve Lacy e o baixista David Friesen, quase sempre com resultados muito bons. Seu piano começou a aparecer mais, em comparação às gravações das décadas de 1950/60: seus parceiros, geralmente, apareciam mais que ele. No belo disco
The Quest, mesmo sendo as músicas de sua autoria, destacavam-se mais os solos do saxofonista e clarinetista Eric Dolphy e de Ron Carter tocando cello – quem tocava baixo era Joe Benjamin.
Não se pode considerar Waldron um improvisador por excelência, como Oscar Peterson ou Art Tatum são ou eram. Sua importância como intérprete se vale menos de “pirotecnias improvisatórias” e mais pelo modo personalíssimo de tocar e desenvolver os temas.
Willow Weep for Me, que não é de sua autoria e está em
Free at Last, é um bom exemplo: Waldron fica quase que tão somente na melodia, sem desdobrá-la em improvisos. Sua qualidade maior está em criar sonoridades diferentes. Um pouco como os “bops”, a tônica não está na melodia. A repetição dos motivos, a forma percussiva que ataca as teclas, sem floreios e o uso de poucas notas, dão um tom sombrio, “dramaticamente diferente”. Waldron “martela” nervosamente o teclado, porém, quando a música pede, toca com enorme delicadeza, sugerindo climas de paz, melancolia e um certo “lirismo impressionista”.
Foi lançado no meio de 2008 pela JustinTime um cd que é, provavelmente, a última gravação de Mal.
Silence – duo do saxofonista David Murray e o pianista – foi gravado em Bruxelas, última morada de Mal, em 2001. Ele, depois do colapso nervoso, mudou-se para a Europa, vivendo, inicialmente na Alemanha e depois fixou residência em Bruxelas, onde morreu em dezembro de 2002. Dois anos anos antes apresentara-se no Chivas Jazz Festival. Ficara hospedado num flat na região dos Jardins e, no dia seguinte a sua apresentação, almoçava tranquilamente com outros músicos que estavam no Brasil, no Esplanada Grill. Um deles era Don Byron que, pela “cara-de-pau” de meu amigo Takashi Fukushima, viemos a conhecer. Mal fumava toneladas de cigarros. Uma amiga, fumante também, viajou no mesmo voo em que voltava para Bruxelas. Coincidência: em Roma, uma das escalas, encontraram-se… na área dedicada aos fumantes.
Murray tornou-se conhecido tocando no grupo “quase free” World Saxophone Quartet. Antes disso, em 1976, tinha lançado
Low Class Conspiracy . Em seu primeiro disco sob seu nome, apresentava maturidade surpreendente para um jovem de vinte anos. Desde então, gravando solo, duos, trios, quintetos, octetos e bigbands, tem perto de uma centena de discos lançados. Mais surpreendente que a prolixidade é a de como consegue manter um bom nível de qualidade e a facilidade com que transita nos estilos jazzísticos, dos mais tradicionais aos mais experimentais.
A primeira faixa de
Silence é uma antiga composição de Waldron em parceria com o baterista Max Roach –
Free for C.T. –, em que David toca clarinete baixo. Nesse instrumento é capaz de atingir desde as notas mais graves às mais agudas com precisão impressionante e uma “alma” apenas comparável à do gênio Eric Dolphy, falecido precocemente em 1964. Murray, no sax-tenor, seu principal instrumento, sem dúvida, é um dos grandes virtuoses da atualidade. O início de
Free… é uma pequena amostra das características de Waldron: notas e acordes que se intercalam entre os graves e médios, que se repetem e “potencializam” a força desta composição. O acompanhamento para o clarinete baixo é “seco” de acordes que se destacam mais pela forma sincopada que toca. O piano é majestoso, não é um simples acompanhante. Ele e o clarinete têm o mesmo peso até quando o solo é de Murray.
O “mood” do disco é de interpretações que realçam as características do piano de Mal: à exceção de
Silence, composição de Murray – que é um belo “showcase” de seu estilo no sax-tenor – e
Jean-Pierre, da última fase de Miles Davis, o restante é de baladas. Delas, a mais bela é a do clássico de Waldron –
Soul Eyes –, também a faixa mais longa do CD, em que o pianista executa um solo belíssimo. É a outra, além de
Free for C.T., em que Murray toca clarinete baixo. Inicia-se com um solo de quase sete minutos e é uma bela amostra da maestria de Murray como improvisador. Nos dois standards,
I Should Care, de Sammy Cahn, Alex Sttordahl e Paul Weston, e
All Too Soon, de Duke Ellington, os dois “arrasam”; a primeira, principalmente, é “dramaticamente” impecável.
Ouça o piano dramático em sua
Seagulls of Kristiansund, aqui acompanhada pela fantástica Jeanne Lee.