segunda-feira, 28 de março de 2011

O sol da meia noite

Muitos dos episódios marcantes na vida de cada pessoa ligam-se a algum elemento externo. Um acontecimento ou uma cena trazem uma lembrança. Na brevidade de uma canção se concentra alguma emoção. Ela pode ser boa ou má. Um amigo, ex-preso político, uma vez disse que odiava Roberto Carlos. Bem naquela hora tocava no rádio aquela que diz “eu quero ter um milhão de amigos”. Especificamente essa música. Quando colocavam algumas músicas de Roberto, sabíamos que alguém estava sendo torturado”, disse. Felizmente, é mais comum associarmos músicas com momentos positivos.

June Christy foi uma das crooners de Stan Kenton
Não há melhor coisa do que sermos “capturados” desavisadamente por alguma música que toca no aparelho de som de sua casa, no rádio do carro, numa canção que não conhecíamos e se revela num filme qualquer. Se fosse fazer uma lista à maneira de Nick Hornby, escritor de Alta Fidelidade, teria de fazer uma contendo mais de três dezenas de músicas. Como são inúmeras e fazerem parte de milhares ouvidas até agora, as lembranças ressurgem quando, desavisadamente, ouço algumas delas. Tinha posto a trilha do filme Midnight in the Garden of Good and Evil (Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal, direção de Clint Eastwood) e lembrei de uma: Midnight Sun, neste cd interpretada por Diana Krall. Lembro que de tanto gostar – no tempo em que foi-me revelada não existia essa facilidade dos lyrics.com pela internet –, tentei tirar a letra. Travava sempre no terceiro verso. Tinha um “aurora borealis” que não conseguia decifrar. Por associação, por “each star” descobri. Os versos eram verdadeiras imagens com uma sofisticação fonética maravilhosa: “Your lips like a red and ruby chalice, warmer than the summer light/ The clouds were like an alabaster palace to a snowy height./ Each star its own aurora borealis, suddenly you held me tight/ I could see the midnight sun.” O “red and ruby”, as rimas de “light”, “height”, “tight”, “alabaster” com “snowy”, me faziam ver cores e imagens que evocavam um momento especial: “And then your arms miraculously found me, suddenly the sky turned pale,/ I could see the midnight sun”. Assim ela viu o sol da meia noite, quando os braços do outro a envolvem, quando o sol esmaeceu.

Lembrei-me que na época estava fanático por uma cantora que tinha sido crooner da orquestra de Stan Kenton, como outras “vozes brancas” de primeira: Anita O’Day e Chris Connor. Havia acabado de conhecer o álbum Something Cool, um clássico. Com arranjos do sofisticado Pete Rugolo, é um daqueles discos imprescindíveis em qualquer discoteca de pessoas de bom gosto. Ah, esqueci de dizer seu nome: June Christy.

Vou comentar rapidamente das várias interpretações da música de Lionel Hampton e Sonny Burke, com letras de Johnny Mercer. Ela é tão perfeita que aguenta até desaforo. Cito apenas aquelas que considero e que conheço. Claro que a minha preferida é a de June Christy. Sorry, amiga, vou deixar a de Ella Fitzgerald em segundo lugar. Outra comparável – nela tudo é, no mínimo, quase perfeito – é a de Carmen McRae. Outras intérpretes femininas que conheço – todas boas – são as de Dianne Reeves, Diana Krall, a também canadense Ranee Lee, Abbey Lincoln, Natalie Cole, Carol Sloane, Dee Dee Bridgewater, Jacintha e Nancy Wilson. Ah, estava me esquecendo de Sarah Vaughan. Pensando bem, sorry again, amiga, Ella vai para o terceiro lugar. A de Sarah está no álbum How Long Has This Been Going on?, rodeada por um time de feras: Oscar Peterson, Joe Pass, Ray Brown e Louie Bellson. Seu Midnight Sun é de ouvir de joelhos. A guitarra de Pass e o piano de Peterson constroem delicadas figuras para a voz superlativa, dramaticamente arrastada de Vaughan.

Das interpretações masculinas, a de Mel Tormé é também superlativa, com sua voz de veludo. Cito uma outra: a de Mark Murphy num “meddley” com Misty. Dos conjuntos vocais, a do Singers Unlimited é de primeira.

Ouça a incomparável June Christy:

quinta-feira, 24 de março de 2011

Jim Hall & Bill Evans: muito além de uma dupla caipira

Duos são comuns no jazz, nem tanto quanto na música sertaneja. São encontros de ocasião e é comum resultarem em discos belíssimos. É claro também que o encontro de dois gênios não quer dizer que, necessariamente sairá algo genial. Mas é infindável o número desses encontros fortuitos com interpretações inesquecíveis. Pode-se citar alguns recentes: ‘Mehldau/Metheny’, do guitarrista Pat Metheny com o pianista Brad Mehldau, Live in Montréal, do baixista Charlie Haden com o brasileiro Egberto Gismonti, Frank and Wess, com o nonagenário genial, recentemente falecido, aos 92 anos, , Hank Jones e o flautista e saxofonista Frank Wess. Na formação piano/sax, um dos bons registros é do CD duplo People Time, com Kenny Barron e Stan Getz, gravação de uma performance no Café Montmartre, tradicional clube de Copenhagen, poucos meses antes da morte do saxofonista em decorrência de um câncer no fígado. Um bom duo em formação “heterodoxa”, genial, é o encontro do trompetista Don Cherry – que no disco toca percussão e teclados também – com o polirrítmico baterista Ed Blackwell em El Corázon, que saiu pela ECM.

Jim Hall e Bill Evans
Agora, genial mesmo é um dos álbuns gravados pelo pianista Bill Evans e o guitarrista Jim Hall. Intermodulation merece um lugar de honra na estante de qualquer um. Bill é responsável por uma das “guinadas” de estilo de Miles Davis ao introduzir o modal no jazz. Em oposição ao bebop, que privilegiava o ritmo sob a forma de progressões de acordes em repetição que serviam de base para os solos dos instrumentos, a forma modal se desenvolvia mais sobre a melodia. Miles admirava o jeito de tocar do pianista Ahmad Jamal, que tinha um estilo diferente dos demais da cena jazzística da época e estava iniciando um trabalho com o arranjador Gil Evans. Kind of Blue é consequência desses “interesses”. Marcou história e é considerado um melhores discos de todos os tempos. Bill Evans, egresso da banda de George Russell, merecia ter seu nome na capa como parceiro de Miles, pois é a alma do disco. A estrutura musical parece mais simples do que as do bebop, mas não é: são simplesmente diferentes. Os solos se sucedem um a um como uma “corrente evolutiva”, em que o tema vai sendo desenvolvido por cada solista. O disco é a oportunidade de ouvir John Coltrane no sax-tenor, Cannonball Adderley no sax-alto e Miles no trompete “cool” no ápice de suas formas, produzindo belos solos com a preciosa companhia de Evans, o baixista Paul Chambers e o baterista Jimmy Cobb. A essência do jazz modal está na bela composição de Evans – “malandramente” assinada por Miles –, Blue in Green, em que o piano é ouvido “meio longe”. São maravilhosos o solo do trompetista e a breve intervenção de Coltrane. No processo evolutivo desse estilo contribuiram depois, não apenas os trios de Bill Evans e o quinteto posterior de Miles, com Herbie Hancock nos teclados, mas também o quinteto de John Coltrane com o pianista McCoy Tyner.

Certamente, Evans é o maior nome do jazz modal. Os álbuns de Bill com o baixista Scott LaFaro, que morreu muito cedo num acidente de carro em 1961, e Paul Motian na bateria, até hoje na ativa, com quase 80 anos, são o ápice do formato trio piano/baixo/bateria. O álbum ‘\Live at the Village Vanguard é básico para quem quiser conhecê-los.

Em 1962, gravou o primeiro disco com o guitarrista Jim Hall, Undercurrent. O jeito econômico e quase acústico da guitarra combinava perfeitamente com o estilo melancólico de Evans. Mas é no álbum Intermodulation, de 1966, que essa parceria encontrou a mais perfeita simbiose. Na composição de Evans, Turn out the Stars, a guitarra de Hall é quase “invisível”. Após o solo do piano, Hall entra com uma guitarra bem discreto, solo de poucas notas, cada qual essencial para a construção da música. Hall é o contrário de John Scofield ou Al DiMeola, que pensam que quanto mais notas melhor é o guitarrista. Hall toca o essencial, é um minimalista. Apoiado ou sentado na banqueta dedilha sua Gibson ES 175. Em Angel Eyes as notas do piano e da guitarra são apenas as essenciais, suficientes para imprimir o “mood” da composição do austríaco Joe Zawinul. Tudo é perfeito no disco, mas se existe algo “mais que perfeito”, é o registro de My Man’s Gone Now, dos irmãos Gershwin. Aos acordes iniciais de Bill e as poucas notas das cordas, sucedem a apresentação do tema que vai se desenhando em progressão para o início do solo austero e rico de sugestões de Jim, em sutis mudanças de tempo. Jim Hall é o poeta do silêncio. É intimista, como Evans. Cada nota de Hall e de Evans representa um brilho dourado e fugaz como a produzida pelos raios de sol em fins de tarde sobre a água.

Darn That Dream.




Dream Gypsy.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Madeleine Peyroux. P. 2

Quando Madeleine Peyroux lançou seu primeiro disco Dreamland, em 1996, não era exatamente uma iniciante. Os pais haviam se separado e sua mãe resolveu mudar-se para Paris com os dois filhos. Madi, como é chamada pelos familiares e amigos, tinha treze anos. Imaginem uma menina com essa idade numa terra estranha. Com quinze anos estava cantando nas estações de metrô e nas ruas de Paris. Aproximou-se de outro “expatriado”, bem mais velho que ela, Daniel William Fitzgerald, e se juntou a sua banda, The Lost Wandering Blues. Sua mãe nem sabia disso. Um dia, andando pela cidade, ouviu uma música familiar, que costumava cantar para a filha. Reconheceu a voz: era Madeleine. Essa breve experiência foi valiosa para sua formação.

A hippie Medeleine
Bare Bones é seu quarto disco solo e seu primeiro em que todas as composições são próprias, em parceria com o baixista e produtor Larry Klein, D. Batteau, Julyan Coryell e o “Steely Dan” Walter Becker. Os destaques são as lentas Damn the Circumstances, Love and Treachery, Our Lady of Pigalle e Somethin’ Grand, que é o título do DVD lançado no Brasil.

Ele foi gravado em um clube de Los Angeles, o que lhe confere um clima intimista. A maioria das músicas do programa são do último CD. Sem ser maravilhoso, deve agradar seus fãs, que vão poder vê-la em suas tevês e telões e também aos que não possuem algum disco dela. Estão lá os maiores sucessos dos cds anteriores: Dance Me to the End of Love, de Leonard Cohen, La javannaise, de Serge Gainsbourg, a linda Between the Bars e, claro, La vie en rose.

A banda que a acompanha é de primeira, com Larry Klein no baixo, o discreto guitarrista Dean Parks, a “hippie” violinista “and other assorted instruments” Lisa Germano, o experiente pianista Jim Beard, Sam Yahel no orgão Hammond e piano elétrico e Joey Waronker na bateria. O show não tem nada desses momento catárticos em que o público grita, chora, canta junto ou esperneia. É todo mundo sentadinho em suas caderias a ouvi-la. E é desse jeito que você, provavelmente, assistirá a esse DVD – refestelado na poltrona ou no sofá, com um whisky ou uma taça de vinho do lado… ou uma taça de champagne, que, talvez combine mais. As canções são como as pequenas bolhas que essa preciosa bebida produz: lentamente ascendem até a superfície.

Bom, imagino que o propósito de Peyroux seja esse mesmo: preencher o ar com música de bom gosto e fazer do público cúmplice desse clima que cria. É o bastante, mas pode ser pouco para quem quer “aquele algo mais”. É, ela não o emocionará a ponto de fazer desses momentos algo inesquecível. Com certeza, fará a satisfação de muita gente. Pena que o dvd tenha sido focado no último cd, o mais fraco de todos. Na maioria das vezes o reconhecimento ou consagração pública não coincide com o ápice criativo do artista. É assim mesmo. Em hipótese nenhuma o classificaria como dispensável, tampouco como indispensável. Porém, apesar desse discurso um tanto vacilante, considero o show registrado em dvd uma prazerosa experiência. Não me conformo apenas com a consultora de estilo – se isso existe… figurisnista? – que a fez se apresentar com uma roupa pavorosa de apresentador de circo, com direito até àquele chapelão alto.

Bom, mas muito bom mesmo é um dos extras. O documentário com a participação de sua mãe, Yves Beauvais, AR, na época, da Atlantic Records, que a descobriu, do produtor atual, Larry Klein e de Daniel William Fitzgerald, músico de sua banda de “rua” nos tempos parisienses, é um belo painel de sua trajetória de vida, mostrando como aquela adolescente virou uma das principais intérpretes da atualidade. Porque tem uma coisa até surpreendente: ela não parece nem um pouco ambiciosa. Não é uma Madonna da vida ou muitas outras que entram no business da música e almejam o sucesso a qualquer preço. Yves Beauvais, no documentário Something Grand diz que, depois de ouvi-la cantando num bar, foi até ela com um contrato para fazer parte do casting da major Atlantic Records.Foi um custo fazê-la assinar. Teve que insistir e até fazer uma pequena “chantagem”. Assinou, mas sem fazer pacto com o diabo.


Bare Bones




Something Grand.



J’ai deux amours.




Publicado em 5/11/2009