segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Madeleine Peyroux. P.1

Em 1996, quando Dreamland foi lançado, algo chamou atenção da crítica: a cantora tinha a voz igual a de Billie Holiday. Se esse fosse o único chamariz, teria fracassado. Yves Beauvais, AR da Atlantic Record a descobriu cantando num bar dos arredores de Nova York a partir da dica de um amigo. Conseguiu contratá-la e foi produtor do disco junto com o baixista Greg Cohen. Yves cuidou muito bem de sua “descoberta”. Arregimentou músicos de jazz do primeiro time como o saxofonista James Carter, os pianistas Cyrus Chestnut e Stephen Scott, o trumpetista Marcus Printup e o baterista Leon Parker, a violinista Regina Carter, além do guitarrista Vernon Reid, antigo membro da banda Living Color e o também guitarrista Marc Ribot, conhecido por suas contribuições para Tom Waits, Lounge Lizards e o gringo-pernambucano Arto Lindsay. Sem ser exatamente um grande disco, mesmo assim Madeleine mostrou que vinha para ficar.

Para quem não sabia do problema do que ocorrera com sua voz, foi muito estranho o seu sumiço depois de tão auspiciosa estreia. Com exceção do CD que fizera com William Galison, oito anos separam Careless Love de seu primeiro disco. É muito tempo, o suficiente para qualquer um cair no esquecimento. Porém, ela não era “qualquer um”. A maioria do público a conhece a partir desse álbum: Dance Me to the End of Love, original de Leonard Cohen, foi largamente tocado e divulgado.

Apesar de boas interpretações no disco de estreia – La vie en rose, Hey Sweet Man, blues composto por Madeleine, A Prayer, em ritmo de música de parada americana e Muddy Water, em que ela parece a própria Billie Holiday reencarnada – acontece um salto qualitativo nos posteriores. Isso se deve, em parte, à produção de Larry Klein, o mago das vozes femininas. Sua longa parceria com a então companheira, Joni Mitchell, resultou em um conjunto de discos que representam a fase madura da compositora e cantora. Sua boa mão na produção é perceptível nos discos de Luciana Souza e Melody Gardot: basta comparar os imediatamente anteriores aos que produziu.

A atmosfera relaxada imprimida pelos músicos combina perfeitamente com o mood das composições próprias e das de outros autores como Bob Dylan (You’re Gonna Make Me Lonesome When You Go), Vincent Scotto (J’ai deux amours) e Hank Williams (Weary Blues). A guitarra econômica de Dean Parks e, principalmente, o trabalho do organista Larry Goldings, que toca piano acústico e o elétrico wurlitzer, são os responsáveis pela atmosfera do disco. Os destaques, além da canção de Leonard Cohen, são Between the Bars e This Is Heaven to Me, a última.

Em Half the Perfect World, de 2006, Larry Klein é parceiro de Peyroux em várias composições, além de produtor. O álbum é uma coleção de boas interpretações, a começar da música tema do filme Midnight Cowboy, filme de John Schlesinger, protagonizado por John Voigt e Dustin Hoffman, Everybody’s Talkin’. A canção de Fred Neil, que tornou-se clássica na voz de Harry Nilsson, em 1969, com “Madi” é mais suave no belo arranjo em que o ritmo é dado por uma sutil percussão. Madi recebe a canadense k.d. lang em River, da também canadense Joni Mitchell. O terceiro canadense, Leonard Cohen, é o compositor de Half the Perfect World e da bela – uma das mais mais do disco – Blue Alert. Para completar, Madi interpreta La javanaise, de Serge Gainsbourg e termina com a eterna e bela Smile, de Charles Chaplin, John Turner e Geoffrey Parsons. “You’ll find that life is still worthwhile/ If you just smile.” Sim, vale a pena.

Como o texto está ficando longo, a segunda parte é sobre o último CD e sobre o DVD que acaba de ser lançado.

Sites:
Dance Me to the End of Love:



La javannaise:




Publicado 3/11/2009

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O jardim de Tiê

Doce Tiê
Como gosto não se discute, apenas se lamenta – como gosta de dizer meu amigo –, na minha lista de melhores do ano de 2010 da música brasileira, incluo discos de duas cantoras. Um é o segundo de CéU e o outro é Sweet Jardim, de Tiê, lançado pela Levis Music. De CéU, falou-se bastante, desde o primeiro CD. Foi fazendo nome apresentando-se em casas “lançadoras”, como o Grazie a Dio!, na Vila Madalena, em São Paulo. Em seu primeiro CD, o destaque era o reggae ‘Concrete Jungle’, de Bob Marley, do tempo em que tinha como companheiros de banda, Peter Tosh e Bunny Livingstone. O segundo de CéU, ‘Vagarosa’ é um álbum em que mostra evolução em relação ao anterior, mostrando amadurecimento consistente e boa fusão de ritmos brasileiros com o reggae, principalmente.

Bem longe de 2010, no ano de 1985, surgia uma cantora folk chamada Suzanne Vega. De voz delicada, acompanhada de parcimoniosos sons eletrônicos, toques e acordes de guitarra e violão, sua música era uma espécie de oásis, sem algum parentesco com os sons que estavam sendo gestados no extremo noroeste americano e revelariam no fim dos anos 1980 bandas como o Pearl Jam – ativos e bem até hoje –, Nirvana e Alice in Chains. Do outro lado do oceano, em 1985, fervilhavam tendências diversas: desde o “punk” John Lydon com seu PIL (Public Image Limited), The Cure, Jesus and The Mary Chains e New Order, que podem ser classificados como os da área mais “barulhenta”, a bandas mais “específicas” como a inesquecível, The Smiths, Cocteau Twins, Durutti Column e mais um bando que lançava discos pela gravadora independente Factory.

Em 2010, ou melhor, no meio de 2009, conheci Tiê. E lembrou-me, de cara, Suzanne Vega. Não pela voz, mas pelo tom doce, ou se quiserem, “fofo” e pelas parecenças de estilos que, costumeiramente, associam-se ao folk. Apesar de ser uma palavra que define um estilo típico da América do Norte, disseminou-se a ponto de existir, por exemplo, uma dupla norueguesa – Kings of Convenience – desse gênero, como deve ter muitas em outros lugares distantes. No ano passado, falou-se muito mais de outras cantoras, e bastante de Mallu Magalhães, que se encaixa menos nessa classificação. Bem, falaram tanto mal da garota que ouso ter o impulso de defendê-la. Seu segundo CD não é pior do que o melhor de Ana Carolina. Vai, existe competência sim em Mallu. Essa coisa de falar mal do outro não tem fim: é tão fácil!

É possível que muitos achem o som da cantora e compositora Tiê bobinho, primário. Existe, porém, algo que a diferencia das dezenas – ou centenas – de cantoras que surgiram nos últimos anos. Em seu jeito “básico” de compor e de falar de sentimentos “básicos” é capaz de emocionar. E de um jeito parecido ao de como Suzanne Vega emocionou milhares de ouvintes. O primeiro álbum, lançado pela A&M Records, em1985, recebeu disco de platina na Inglaterra, o que significa que vendeu muito bem. São inesquecíveis Marlena on the Wall, Undertow e The Queen and the Soldier, que tem uma letra descritiva sobre o soldado que se vê à frente da rainha para saber por quem mata e, antes de saber, é morto “e a batalha continuou”. Em seu próximo álbum emplacaria sucessos como o “a capella“ Tom’s Diner e Luka.

Um pouco como Vega, Tiê emociona de forma despojada no álbum Sweet Jardim, lançado no meio do ano passado. A primeira faixa tem ela e o violão, apenas. Assinado Eu tem uma letra que tem endereço, como uma carta. A segunda, Dois é a melhor de todo o CD: “Como dois estranhos,/ cada um na sua estrada,/ nos deparamos, numa esquina, num lugar comum.// E aí? Quais são seus planos?/ Eu até que tenho vários./ Se me acompanhar, no caminho eu posso contar.// E mesmo assim, queria te perguntar,/ se você tem aí contigo alguma coisa pra me dar./ Se tem espaço de sobra no seu coração./ Quer levar minha bagagem ou não?// […] Eu vou levar sua bagagem e o que mais estiver à mão.” O arranjo é despojadamente belo: voz, violão e sons do piano Fender Rhodes. Vem Andar depois, Passarinho, que parece uma cantiga de ninar embalada por um cello, o violão e poucas notas de piano. Tudo é pouco, encantadoramente simples, algumas vezes infantil, adolescente, singelamente básico como “Se eu pudesse mostrar/ o que você me deu,/ eu mandava embrulhar, chamaria de meu.// Melhor forma não há/ pra guardar um amor,/ então preste atenção,/ ou me compre uma flor.” e, somando tudo isso, o tudo é muito.’’

Veja o clipe da linda Dois:


Dois, Tiê from juliana mundim on Vimeo.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O bardo canadense Leonard Cohen

Acho que todo mundo já notou que o ar em contato com a superfície quente do asfalto cria um efeito de “miragem”, que é como se estivéssemos a “ver” o ar em movimento. É possível ver tal fenômeno logo antes da largada de corridas de Formula 1, por causa do calor das pistas, dos motores e dos gases que saem dos escapamentos. Isso acontece em superfícies quentes e também em superfícies gélidas como as das regiões polares. Variações abruptas da temperatura do ar causam uma espécie de refração. Isso tem um nome: “fata morgana”, expressão que vem do italiano em referência à meia-irmã do Rei Artur que, “segundo a lenda, era uma fada que conseguia mudar de aparência ‘criando’ um efeito de ilusão óptica” (as aspas são porque tirei essa definição da Wikipédia”.

Werner Herzog fez um filme em 1971 com esse nome. Acho que poucas pessoas o assistiram. O cineclube da Faculdade de Arquitetura da USP promovia com frequência sessões de filmes de pouco apelo comercial, raramente exibidos em sessões comerciais. A primeira cena é a de um avião pousando num aeroporto no meio do nada. A câmera fixa “vê” a imagem sob o efeito da fata morgana. Essa cena se repete várias vezes “anunciando” que estamos chegando em um lugar de clima tórrido, no caso, ao deserto do Saara.

O filme, na época, impressionou-me. A trilha musical combinava perfeitamente com as cenas de paisagem desolada e despovoada. A amiga Ruth Klotzel disse que as canções eram de um cantor chamado Leonard Cohen. Procurei nas melhores lojas de São Paulo e não encontrei nada dele. Na primeira viagem que fiz a Nova York comprei o LP Songs of Leonard Cohen. E todas as músicas do filme estavam lá: Suzanne, So Long, Marianne, Hey, That’s No Way to Say Goodbye e Sisters of Mercy. Tornou-se meu disco predileto por muito tempo. A voz de Cohen era meio grave, melancólica e triste. Sem entender direito as letras, “via” as tais paisagens desoladas de Fata Morgana e imaginava que eram palavras de dor e abandono. No mesmo ano de 1971, Robert Altman dirigiu o filme McCabe and Mrs. Miller (Onde os Homens São Homens, em DVD, trocaram o título para Jogos e Trapaças). Warren Beatty era um jogador de cartas profissional que vagava de cidade em cidade atravessando regiões nevadas e desoladas. Eram viagens solitárias – ele e o cavalo – por lugares em que não se via uma vivalma. As canções que os acompanhavam também eram solitárias – a voz e o violão. Logo identifiquei que era Cohen. Provavelmente, nem Altman tinha visto o filme de Herzog e nem o contrário, mas era uma coincidência muito grande. No mesmo ano!

O canadense Leonard Cohen quando se tornou músico já era um escritor com algumas obras publicadas, o que explica a qualidade de suas letras, em contraste com a pobreza característica da maioria das canções pop/rock.

O melhor intérprete de Leonard Cohen é ele mesmo. Com quase 50 anos de carreira está sendo descoberto pelas novas gerações e estamos sempre a tomar conhecimento de intérpretes regravando-o. Sua voz, nos anos 1960, não era tão grave como agora. Mais áspera, perdeu um certo brilho. Devido a pequena amplitude de sua voz, o tom é sempre meio monocórdio. Pode-se dizer que inventou um estilo de cantar à sua medida. Suas limitações como cantor são camufladas pelos “backing vocals” femininos, violões acústicos ou esporádicas intervenções de algum outro instrumento. No século XXI a cozinha aumentou: presença maior de baterias, órgãos eletrônicos, saxes, gaitas e até algo parecido a uma guitarra portuguesa. Não dá para dizer que piorou. Pode-se dizer que, como todo mundo, transformou-se. Continua interessante. Alguns o compararão a Serge Gainsbourg ou ao australiano Nick Cave.

Vamos a Leonard Cohen pelos outros. Na área jazzística, Suzanne foi cantada por Dianne Reeves, René Marie e pelo novo darling do show business, Michael Bublé. No pop/rock temos First We Take Manhattan com o R.E.M., Hey, That’s No Way to Say Goodbye, com IanMcCulloch, vocalista do Echo & The Bunnymen, So Long Marianne com a banda inglesa James, Chelsea Hotel com Lloyd Cole, Hallelujah com John Cale, ex-membro do Velvet Underground, Suzanne com Nick Cave e uma estonteante Who by Fire pela banda underrated House of Love. Sua conterrânea k.d. lang, como de costume, interpreta um irretocável Hallelujah e um belo Bird on a Wire em seu último CD Hymns of the 49th Parallel. Num terreno que nem é pop nem é música erudita, a canadense Patricia O’Callaghan no CD Real Emotional Girl interpreta várias de seu repertório: Hallelujah, I’m Your Man, Take This Waltz e A Singer Must Die. Vale a pena ouvir.

Uma sugestão para se conhecer todos os sucessos de Cohen é o recém-lançado Live in London, duplo, que saiu em abril deste ano. Ele fala um pouco demais no show, mas está perdoado depois de tanta coisa boa que compôs.

kd lang: http://www.youtube.com/watch?v=P_NpxTWbovE&feature=related
Patricia O’Callaghan: http://www.youtube.com/watch?v=pYLsH0KQCl4
Leonard Cohen / ‘Hallelujah’: http://www.youtube.com/watch?v=ttv5dyvtF4o&feature=related

Publicado em 8/10/2009

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A boa aposta em Melody Gardot

O talento de Melody
É estranho a grande imprensa no Brasil não ter dado a devida atenção a Melody Gardot. Seu último disco foi lançado no Brasil e, até onde eu sei, não se falou dela. Não faltam elementos que podem funcionar como “ganchos” para uma bela matéria, a começar pelo nome, que nos faz lembrar de Brigitte Bardot; é autora da maioria das músicas que grava. E aqueles óculos? Até nas capas de seus discos? Tem presença, é uma bela figura. Usa bengala para andar. O que pode ter acontecido com ela? E um último e importante detalhe: tem talento.

A razão de usar bengala e usar óculos escuros são a consequência de ter sido atropelada aos 19 anos andando de bicicleta. Ficou um ano hospitalizada. As sequelas foram sérios danos na bacia e na espinha, intolerância ao som e a luz. Antes de saber disso imaginei que os óculos eram uma acessório para lhe dar um certo ar de “intelectual” francesa, meio Audrey Hepburn em Funny Face. Pelo nome pensei que fosse francesa. Curioso e meio voyeur, aquele rosto na capa do CD que via exposto em todas as Fnacs e Virgins de Paris, me atraiu. Talvez fosse francesa cantando em inglês. Enganei-me. O disco não me impressionou muito na época: era meio Norah Jones e como não era lá muito fã dela, meio que a abandonei.

Um ano depois vi seu segundo disco. Por causa do título, My One and Only Thrill, que deve ter sido inspirado pela música My One and Only Love, que eu adoro, resolvi comprar.

Worrisome Heart, seu primeiro CD – tem o EP Some Lessons: The Bedroom Sessions entre os dois lançamentos –, como disse antes, me fez lembrar de Norah Jones e de várias outras que apareceram na mesma época, com o mesmo tipo de voz e repertório, meio molenga, um pouco insosso. No entanto tinha uma canção maravilhosa: Love Me Like a River Does. E a letra é uma maravilha: “Love me like a river does/ Cross the sea/ Love me like a river does/ Endlessly/ Love me like a river/ Baby, don’t rush, you’re not a waterfall”. Vale o disco. Imagens têm sentimentos.

O segundo, para meu espanto, era bem melhor que o anterior. Descobri por que: a produção era de Larry Klein. Ele tem a capacidade de valorizar e potencializar o talento de quem produz: Joni Mitchell, Madeleine Peyroux e Luciana Souza. Orquestrações sutis, solos discretos na medida se somam ao talento de Gardot como compositora e cantora. As canções “tristes” são as melhores e bem combinam com sua voz. Nas músicas mais “saltitantes”, dá-se bem também. A primeira faixa, Baby I”m a Fool parece com qualquer outra do CD anterior à exceção de um pequeno detalhe: o diferencial Klein. Cordas e um violão acústico que servem de ligação às palavras cantadas são um prenúncio do que está por vir. Larry Klein imprime um sabor “francês”, um clima meio bossa. A citação não é despropositada. Ouçam Coralie Clément, Carla Bruni e Charlotte Gainsbourg. Podemos dizer que existe um estilo “francês” de cantar: vozes pequenas e afinadas, com aquela sensualidade meio despretenciosa. Parte do álbum segue essa receita. Na quarta música, sentimos que algo está acontecendo. Um piano, um trumpete de poucas notas e um órgão criam o clima para a primeira faixa que vai fazer valer a pena comprar o disco: Your Heart Is as Black as Night. Só pelo título dá para imaginar o petardo que vem. Duas canções climáticas se seguem: Lover Undercover e Our Love Is Easy. Nessa altura, somos cúmplices das dores de Gardot. É um crescendo que se oxigena com uma leve faixa cantada em francês, meio Henri Salvador, leve percussão, sopros dobrados, aquele violãozinho; o chantilly desse doce é um belo solo no sax alto de Gary Foster.

Aí, Melody resolve nos tirar o fôlego de vez. A balada The Rain é daquelas de suspendermos a respiração para ouvir sua voz, o piano e as notas esparsas do sax tenor de Bryan Rogers. Ouvi-la faz chover em nossos corações. Uma sessão de cordas abre a próxima: My One and Only Thrill. Com Deep Within the Corner of My Mind, as duas anteriores formam um bloco só. Sua voz é doce e dramática, sem arroubos.

Gardot então canta a única música que não leva sua assinatura: Over the Rainbow. E termina com If the Stars Were Mine. Sim, há esperança nesse mundo. Um arco-íris desponta no horizonte. Num clima meio bossa saímos felizes por conhecer uma cantora que vale apostarmos nossas fichas.

Veja:
My One and Only Thrill

<iframe width="560" height="315" src="http://www.youtube.com/embed/9NlCqgLx0pc" frameborder="0" allowfullscreen></iframe>


Baby, I’m a Fool

<iframe width="640" height="360" src="http://www.youtube.com/embed/2eGAAfHCE7c" frameborder="0" allowfullscreen></iframe>


Your Heart Is Black as Night:




Love Me Like a River Does:



Publicado em 29/10/2009

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Martha Argerich, ou o que são e o que achamos que são

Temos o costume de colocar os gênios em panteões. Assim, tornam-se inatingíveis e guardamos uma distância respeitosa e, ao mesmo tempo, temerosa. E o medo faz coisa. Ninguém é deus e muito menos, inatingível. A revelação dos deslizes do ídolo do golfe Tiger Woods, em atitudes absolutamente humanas – traía intencional e determinadamente sua esposa com mulheres menos belas que ela e com profissionais do sexo –, fez com que, de quase deus virasse o que, no fundo, todos são: “ordinários”, no sentido da palavra em inglês, que significa “simples”. Sim, simples humanos.

Sim, gênios são peculiares e, incluídos nesse gênero, os prodígios. Em algumas especialidades as tendências manifestadas cedo são essenciais ao posterior desenvolvimento de suas características especiais. Mas não basta o prodígio. Mais que ele é preciso muita disciplina e treino. No tênis, para citar um caso célebre, temos o de Björn Borg, que, prematuramente, aos 26 anos abandonou as quadras para viver a “high life” a que todo milionário poderia se permitir. Descobriu que, além da férrea disciplina a que era submetido, “lá fora” existiam mulheres lindas, drogas e muita festa. Outro tenista, “muy” amigo, Vitas Gerulaits, foi um dos responsáveis por esse “desvio” em sua vida. E, afinal, não foi muito feliz nesse “novo mundo”. Gastou todo o dinheiro que ganhou, entrou em empreendimentos que lhe custaram a falência e tentou o suicídio uma vez.

Esse caso de desvio, por outros caminhos, aconteceu com o maior enxadrista brasileiro de todo os tempos, Henrique da Costa Mecking, o “Mequinho”, terceiro no ranking mundial. Conheceu o ocaso por conta de uma doença rara – a miastenia – e algumas excentricidades toleradas apenas nos gênios.

Argerich, grande virtuose, grisalha e feliz
No entanto, é na música que o pendor parece indispensável, principalmente no piano. A maioria dos grandes virtuoses deste instrumento mostrou seus talentos muito cedo, alguns com apenas três anos de idade. É o caso do brasileiro Nelson Freire. O mineiro, que grava pela Decca, uma das maiores do repertório clássico, é hoje um dos maiores pianistas vivos. Acontece o mesmo com sua grande amiga, a argentina Martha Argerich.

Dizem que genialidade não escolhe lugar para nascer. Pode sugir um gênio musical nos confins da mata amazônica? Pode ser? Improvável? E depois, nada acontece se não houver um pequeno “empurrão” do destino… ou do governo. Um caso exemplar – vamos ficar circunscritos à América Latina – é o de Claudio Arrau. Prodígio – fez sua primeira apresentação pública com cinco anos –, filho de família tradicional, com menos de dez anos, foi enviado junto com sua mãe – o pai morreu quando tinha um ano –, financiado pelo governo chileno, para estudar na Alemanha com Martin Krause. Isso se deu nos anos 1910.

Bom tempo depois, sucedeu-se algo parecido com outro prodígio: Martha Argerich. Juan Perón, presidente à época, subsidiou sua ida para a Europa para estudar com Friederich Gulda na Áustria, empregando seus pais em embaixadas. Até hoje, de uma geração de ouro em que se destacam Maurizio Pollini, Alfred Brendel, András Schiff, Stephen Kovachevich – que era Bishop e trocou o nome por causa de um astro de rock homônimo – e o brasileiro Nelson Freire, a argentina é pianista do primeiro time.

Está disponível no mercado brasileiro o belo documentário Martha Argerich – Conversa Noturna, de 2003, direção de Georges Gachot, pelo selo EuroArts, que, desde o ano passado, está lançando uma série de títulos de música clássica no mercado brasileiro. Vemos os gênios como pessoas inatingíveis, como disse inicialmente. A Martha que imaginei, deveras, não existe. Aquela mulher que tinha um certo ar existencialista, com bastos cabelos negros, olhos levemente amendoados, fumante, era a “dama inatingível”. É possível que essa imagem tenha se sedimentado por conta do incidente em que, como protesto, abandonara o júri de um desses concursos de piano, quando um competidor, o croata Ivo Pogorelich, fora eliminado. Dizendo que Ivo era um gênio, foi embora. Parecia atitude de “prima-dona”.

No documentário de Gachot, essa impressão vai embora. Primeiro pelo seu jeito de “não estar nem aí” para a aparência visual. Em vez da senhora cheia de “pancake” no rosto, de cabelos cuidadosamente cofiados, estamos à frente de alguém que não se preocupa em tingi-los e muito menos de penteá-los mais cuidadosamente. Suas mãos – invariavelmente belas, produzem sons tão sublimes – carecem de nuanças que as enfeitem. Sem um traço de maquiagem, fala, e muito. É um susto. Achava até que não falava! Conta histórias engraçadas como a de Friederich Gulda que, ao conhecer o inexcedívell jazzista Erroll Garner, disse-lhe que seu piano lembrava a música de Ravel. Erroll respondeu: “Quem é esse cara?”. Mais ou menos assim.

O aparente “estrelismo” se explica pela timidez. Imagine-se uma menina de pouco mais de dez anos fora de sua terra natal, viajando sem parar, sem poder fazer amigos ou brincar como qualquer criança. É o sacrifício dos gênios. A quase criança, com dezessete anos sentia-se uma mulher solitária de 40. Argerich sobreviveu à disciplina a que se submeteu e parece feliz tocando piano. É o que passa o bom documentário de Gachot.

A naturalidade das mãos de Argerich passeia pelas teclas do piano em suave dança, enérgicas quando necessária, pelas composições mais difíceis de Liszt, de Prokofiev, por atmosferas diáfanas como a de Mamãe Gansa – que toca a quatro mãos com Nelson Freire –, de Ravel, são pura magia. Se o homem normal vir alguns objetos como inatingíveis, os gênios também. Martha, logo no início do documentário, fala de quando foi assistir a uma apresentação de Claudio Arrau, bem menina, com sua mãe: “Foi a emoção mais forte que senti com a música. Eu tinha seis anos, lembro-me bem. Foi com o 4º de Beethoven [4º Concerto para Piano e Orquestra, op. 58]… que eu não toco.” Pois é, Martha nunca tocará esse que, com o terceiro, são dos mais belos de todo o repertório bethoveniano.

Veja e ouça:
Ravel – Jeau d’eau.



Bach – Partita nº 2.



Publicado em 17/3/2010 pela primeira vez

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

As belas irmãs Labèque

As irmãs Labèque. Katia é a da esquerda
Katia e Marielle Labèque ficaram conhecidas mundialmente gravando peças de George Gershwin, um dos primeiros compositores que subverteu os limites do erudito x popular. Rhapsody in Blue e o Concerto em fá menor são músicas do primeiro gênero. Porgy & Bess também. Porém, mesmo sendo uma ópera, alimentou o jazz com inúmeras “canções avulsas”, conhecidas inclusive, pelo público não ligado ao jazz: I Loves You Porgy, Summertime, My Man’s Gone Now, Bess You Is My Woman e outras mais. O termo “música” ou “canção” descontextualiza e deforma o termo que deveríamos usar para essas peças: se fazem parte de uma ópera, o termo mais correto seria “ária”.

Ao gravarem Rhapsody in Blue, de Gershwin, elas conseguiram a surpreendente marca de quase meio milhão de discos vendidos. Não é pouco. E olhe que Rhapsody… nem pode ser considerada peça do repertório popular. É sim, no máximo, uma música “fácil” tanto quanto as Quatro Estações, de Vivaldi, ou Carmina Burana, do neoclássico Carl Orff, mas são do universo erudito. Nem um intérprete de Mozart nem de Beethoven conseguiu tal proeza. Não sei se seria temerário especular-se que esse meio milhão não é apenas pelo talento delas. Primeiro, devemos considerar que, além de ‘Rhapsody…’ ser bem conhecida, segundo, que por trás delas estava uma das mais poderosas gravadoras, e por conseguinte, uma boa estrutura de maketing. São duas belas e charmosas virtuoses. Num universo que até há pouco tempo o item beleza era posto em segundo plano e o talento em primeiro – Wanda Landowska, Birgit Nilsson, Montserrat Caballé –, a união dessas duas qualidades era um ponto a ser explorado. De hoje em dia, ficou comum. Temos cantoras belas como Anna Netrebko, Anne Sofie von Otter, ou virtuoses como a violinista Anne-Sophie Mutter com seus vestidos Dior. Ninguém importava se a irresistível e selvagem Carmen da ópera de Bizet era enorme de gorda… e feia. É indubitável a perversidade desse mecanismo em detrimento do talento. Andy Warhol tinha previsto e tudo se confirma com a quantidade de publicações focadas nesse mundo superficial das celebridades. Como diz um amigo, numa afirmação politicamente pouco correta, para se fazer sucesso é preciso beleza, carisma e talento, nessa ordem. A “big brother” atriz Graziela Massafera não nos deixa mentir. Para os verdadeiramente talentosos, hoje, o caminho para o sucesso é bem mais cheio de obstáculos.

Na carreira das irmãs Labèque há um equilíbrio desse discreto charme de suas belezas: gravaram Bártok, Brahms, Ravel, Tchaikovsky, Rachmaninov e Poulenc. Confirmando que, antes de mais nada, são talentosas, Katia e Marielle tiveram o privilégio de serem as primeiras a gravar peças de compositores contemporâneos como Pierre Boulez, Luciano Berio e Gyorg Ligeti. É um bom handicap.

Por motivos extra-musicais – a especulação é minha –, provavelmente, a ligação mais que profissional de Katia com o guitarrista John McLaughlin, tenha influenciado no interesse pelo jazz. Outra possibilidade é a de que, pelo fato de pertencerem a uma geração que viveram as revoluções de costumes dos anos 1950 e 60, ouviram e “viveram”, além da música clássica para o qual foram treinadas desde criança, outros gêneros musicais.

Não comentarei sobre os discos de música clássica, que foram exaustivamente resenhados pelas revistas especializadas. Irei me ater rapidamente apenas aos dois voltados ao jazz:

O primeiro a ser gravado, em 1991, foi Love of Colors. É um disco desigual, mas que tem uma enérgica interpretação de Spain, de Chick Corea. Rhythm-a-Ning, de Thelonious Monk, Blue in Green, de Bill Evans, e Caribe, de Michel Camilo, e Ballade do franco-argelino Martial Solal, são um bom complemento. As quatro peças de John McLaughlin são dispensáveis: não fazem parte da melhor fase do camaleão inglês.

Cabe uma observação no que concerne não só a elas mas aos intérpretes de música clássica. Em Love of Colors, todas as músicas foram arranjadas por François Jeanneau – habitual parceiro nas adaptações para o formato de dois pianos ou a qutro mãos – e McLaughlin. Katia e Marilelle interpretam apenas o que está registrado nas partituras. Pianistas clássicos não improvisam. Como diz a própria Katia em matéria para a Classic FM: “Não tenho base nem treino para ser uma verdadeira improvisadora de jazz, embora amasse em poder ser. Então entro na música como intérprete.” Nelson Freire, no documentário dirigido por João Moreira Salles, revela sua paixão pelo pianista de jazz Erroll Garner. Freire se encanta pela habilidade de Garner e, principalmente, pela sua capacidade de improvisação. Diz que queria tocar como ele. É: cada macaco no seu galho.

Little Girl Blue é um disco de duos, de Katia mais algum convidado. A irmã Marielle, que aparece em apenas uma faixa (On Fire), pelo jeito, não tem o interesse por jazz que a outra tem. Stuart Isacoff, em Piano Today, classifica Katia como yang e Marielle, ying. Elas se complementam, seguem juntas e são um dos únicos duos do mercado da música clássica.

O álbum gravado em 1996 é cheio de grandes momentos. Cada parceiro soube imprimir uma marca diferente interagindo com Katia. Chick Corea comparece com as poéticas We Will Meet Again e Turn out the Stars; o elétrico ex-fundador do Weather Report, Joe Zawinul, recentemente falecido, faz um duo em Volcano for Hire; o grande – nos dois sentidos – organista Joey DeFrancesco mostra que se defende muito bem no piano em Summertime. O cubano Gonzalo Rubalcaba comparece em três oportunidades: no belíssimo Besame Mucho, em Prologo Comienzo e no clássico bolero Quizás, Quizás, Quizás. As partes de Katia foram previamente escritas por seus parceiros ou são transcrições de outros autores, como Oscar Peterson, na bela música título Little Girl Blue, a única que Katia toca sozinha. A melhor do CD, no entanto, é My Funny Valentine, com Herbie Hancock. É estupendo: começa fora do tema e, sem aviso, imergimos no belíssimo tema consagrado por Frank Sinatra e Chet Baker.

Katia Labèque e Joey DeFrancseco em Summertime.



Um arranjo interessante de Bolero, de Maurice Ravel, com dois pianos e percussão.



Publicado em 17/3/2010

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A vanguarda, segundo Rubinstein

Um senhor fica a observar por três longos minutos os músicos da orquestra do Concertgebouw de Amsterdam, regida por Bernard Haitink. A entrada do piano no 3º Concerto para Piano e Orquestra, op. 37, de Beethoven é um dos momentos mais impactantes da música. É de faltar o ar. É o oposto do que acontece ao se ouvir o início da ópera ‘Tristão e Isolda’, de Richard Wagner. O Prelúdio é tão sublime que faz com que o tempo “pare”. Desse universo imaterial de sons mágicos, com a entrada das vozes, voltamos ao mundo terreno.

Rubinstein, aquele que sabia viver
No Concerto de Beethoven, no primeiro movimento, o breve silêncio – que se faz após a introdução da orquestra e o primeiro ataque do piano – parece infinito. O allegro con brio chega em ondas de colorações, dramáticas ou doces, no entanto sempre enérgicas, num turbilhão que nos paralisa. Desse estado “tenso”, o início do segundo movimento nos transporta a um outro lugar. Largo, bem lento, como uma vaga em câmera lenta, que nos invade, subrreepticiamente, em contraste ao primeiro movimento. Esse senhor de 86 anos de cabelos totalmente brancos e um pouco rebeldes, com um olhar vago que, de vez em quando, se desvia e dirige-se aos movimentos do maestro, chama-se Arthur Rubinstein.

Esse pianista, que morreu com 96 anos, viveu pouco mais de 80 anos do século XX. Simbolicamente, como Picasso, são os protagonistas desse século. Fez parte de um tempo glorioso em que aconteceram grandes revoluções políticas, econômicas e artísticas. Presenciou as grandes mudanças e grandes tragédias como o Holocausto e duas guerras mundiais que mudaram a geografia do mundo e que, mais uma vez, demonstraram que a humanidade não evoluiu muito e o que vale é a eliminação do “inimigo” a todo custo em razão de uma “boa” causa. Mas Rubinstein, filho de judeus poloneses, viu que o melhor de tudo era viver bem e soube tirar o maior proveito dela por conta de seu talento excepcional em emocionar os amantes da música. Para alguns pode parecer frívolo demais desfrutar dos prazeres da boa mesa, dos bons vinhos, dos charutos cubanos, de ser amigo de Picasso, de Jean Cocteau, de ter pinturas de Chagall penduradas na parede e, principalmente, de amar muitas mulheres. Parece até que a música ficou em segundo plano, mas é o contrário; foi um virtuose que deu muito tanto prazer aos seus ouvintes como o que teve em sua longa vida. Aos 87 anos, separou-se para viver um outro amor.

Excepcional intérprete de seu conterrâneo Chopin, foi também de seus contemporâneos. Nos primeiros anos dos 1900, os russos Kazimir Maliévitch, Maiakovsky, Rodchenko, cada qual com suas artes específicas, revolucionavam a arte, assim como Picasso e Kandinsky. Na música, os franceses Debussy e Ravel eram vanguarda, assim como o russo Igor Stravinsky, que foi vaiado na apresentação de Sagração da Primavera. Nesse “mundo pequeno” “todos” se conheciam: era amigo dos compositores franceses, de Picasso, de Marc Chagall, de Jean Cocteau. E como viveu muito tempo, em entrevista dada a Robert MacNeill quando tinha 90 anos e já estava quase cego, falou sobre tocar compositores jovens – digo, jovens na década de 1970/80. É bem interessante o seu depoimento. As pessoas devem levar em consideração um pouco mais os seus gostos e o tempo em que vivem. Nessa ótica, tenho minhas razões de adorar um compositor contemporâneo como Olivier Messiaen e não me interessar nem um pouco por Stockhausen.

Leiam o que Rubinstein disse:
“Vanguardista não é exatamente o termo que utilizaria. Quando era jovem, me entusiasmava, como todo jovem, pelo novo. Briguei por Debussy, por Ravel, por Szymanowski, por Stravinsky, por Prokofiev. Eram pessoas da minha juventude. Agora, a vanguarda atual é boa para os jovens, não para mim. Estou completamente às cegas. Não entendo o que querem dizer. Acredito que não temos o direito de julgar o que não entendemos. Posso apenas julgar algo que entendo muito, muito bem. E posso dar-lhes motivos. Posso lutar pelo que penso e por tudo, mas o que posso dizer da música de Stockhausen ou Boulez, que produzem ruídos que, para mim, parecem incompreensíveis?”

O depoimento transcrito está nos “extras” do DVD Artur Rubinstein in Concert, da Deutsche Grammophon.

Vejam o 1º Movimento do 3º Concerto para Piano e Orquestra, de Beethoven.



Há uma quantidade enorme de vídeos das performances de Arthur Rubinstein no You Tube.

Republicação de texto postado pela primeira vez em 19/11/2009

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Onde os velhos têm vez

Como de costume, sempre havia um tom de ironia no que L.P. Baravelli dizia. Quando pensara no que ser, achou que seria interessante tornar-se artista plástico. Citou os exemplos de Picasso e Matisse. O primeiro, mesmo nonagenário mantivera uma criatividade surpreendente, assim como Henri Matisse, que nos anos finais, que realizou primorosas colagens em papel colorido (cutouts). Se escolhesse ser jogador de futebol, disse, sua carreira, depois dos 30 anos, estaria em declínio. Além da profissão de artista plástico, Baravelli poderia ter escolhido a de escritor, ou até a de músico se o seu talento para o desenho não fosse tão evidente.

Rubinstein à esquerda; Horowitz, à direita
Um caso de longevidade surpreendente é a dos pianistas clássicos. Ou a de maestros como Herbert von Karajan, que morreu com 80 anos e Karl Böhm, que faleceu dias antes de completar 87 anos. Continuaram a reger até pouco antes de morrer. Uma das ultimas gravações de Böhm, a Nona Sinfonia de Beethoven, é um exemplo: o terceiro movimento em adagio molto e cantabile, lentíssimo, é primoroso e original. Talvez a música seja um elixir para a vida longa. O pianista chileno Claudio Arrau e o russo Wladimir Horowitz nasceram no mesmo ano de 1903 e mantiveram uma excelência até o fim de suas longas vidas: o primeiro morreu em 1991 e o segundo, em 1989. Outro foi Arthur Rubinstein, que nasceu em Lodz, Polônia, em 1887 e faleceu em 1982. Os três fazem parte de uma geração de ouro, que puderam ter suas performances eternizadas em áudio e vídeo.

Há algo de curioso em ver esses virtuoses que viveram quase um século sentarem-se e fazerem de suas mãos nascerem sons. Se fechássemos os olhos, não poderíamos descobrir suas idades. Mas se os vemos, sentimos que há algo de eterno na magia dos sons produzidos por mãos que passeiam pelo teclado. Há uma majestade nisso. Num dos últimos recitais de Wladimir Horowitz, em Viena, vemos aquele senhor de passos lentos e cadeiras largas aproximar-se do Steinway e o público faz silêncio, pois sabe que está frente a um momento inédito e excepcional. Seus olhos pequenos e desproporcionais em relação ao nariz adunco nem se movem, suas mãos aproximam-se das teclas e instaura-se o feitiço que fará do público voltar para casa sabendo que participou de um momento especial. E mesmo para nós, que, simplesmente, tivemos a chance de ver esse registro em VHS e LD (laserdisc). Mozart, Schubert, Chopin, Liszt, Schumann e Moszowski… normal, repertório tantas vezes ouvido. As apresentações ao vivo possuem essa magia de serem momentos únicos. Muitos não gostavam de Horowitz por conta de suas “liberalidades” interpretativas. Como não tenho capacidade crítica suficiente para concordar ou não com isso, posso apenas dizer que me senti enfeitiçado por aquela figura que não movia um músculo e tocou um dos melhores Kinderzenen, de Schumann, que já ouvi.

Não sei se há uma certa morbidez em sentir-me enfeitiçado por esses senhores no crepúsculo de suas vidas tocando tão bem ou melhor do que quando tinham vinte anos. É uma sensação da importância da experiência, digamos, de ver, por exemplo, Karl Böhm regendo o 3º Concerto de Piano e Orquestra, de Beethoven, sabendo que é um homem fisicamente alquebrado e ainda capaz de tirar tudo daqueles músicos, todos mais novos, que ele e um ainda jovem Maurizio Pollini, com os cabelos que se revoltam com a expressividade “à italiana” dos movimentos nervosos e exatos no rigor matemático de sua interpretação.

Mas isso é apenas uma quase introdução para falar um pouco daquele que era considerado por muitos como o pianista do século: Arthur Rubinstein. Em comum com Horowitz tem a ascendência judaica e uma característica física comum: narizes grandes. Ao contrário do russo, o polonês foi uma pessoa que soube viver a vida. Enquanto Rubinstein se “divertia”, Horowitz passava por períodos em que sumia do cenário musical devido a problemas de depressão. Consta que, apesar de ter sido casado com a filha do regente italiano Arturo Toscanini, era homossexual, o que pode ter ser um dado a mais na composição de sua frágil estrutura psíquica.

Em 1969, foi feito um documentário dirigido por Gérard Patris e François Reichenbach sobre o polonês, cujo título era L’amour de la vie – Arthur Rubinstein. Impossível título melhor. Na época em que foi feito era um “jovem” de pouco mais 80 anos. É uma lição de vida. Marcou-me muito na época em que assisti. Descobri que, para ser um grande artista não era necessário ser um “sofredor”, alguém atormentado como o próprio Horowitz ou como Van Gogh ou Robert Schumann. Aquele homem de infância difícil, que tentou se matar quando tinha 18 anos, depois de seu ato impensado, descobriu a vida e soube aproveitá-la muito bem tomando bons vinhos, fartando-se com os melhores pratos, fumando charutos cubanos, morando muito bem, sendo amigo dos maiores artistas contemporâneos e, principalmente, namorando muito. Sua fama de mulherengo não era só “fama”. Talvez por adorar mulheres – vai um pouco de misoginia aqui – tenha passado dos noventa tocando como nunca. Outro caso de longevidade e excelência é o de Tony Bennett que, com 83 anos, pinta como hobby e continua mantendo a mesma classe que o consagrou. E parece que tem fama de mulherengo também.

E é maravilhoso ver um velhinho de mais de 90 anos ser perguntado sobre ser considerado o melhor pianista do mundo e responder da seguinte forma: “Ninguém é melhor. São diferentes. Um artista deve ser único, um mundo em si mesmo.”

Outra definição muito boa desse gênio que morreu em 1982: “Fazer música é algo metafísico. Um quadro é um quadro, é algo visível. Uma escultura é visível. Um poema é visível sobre o papel. A música [a partitura] é visível mas não audível. Existem apenas, e é necessário a outra parte, a dos músicos, os intérpretes. Eu pertenço a este grupo. Digo que os intérpretes são bons talentos, os compositores, gênios, se é dos grandes compositores de que estou falando.”

Obs: Espero não estar ferindo suscetibilidades com o título. É uma brincadeira com o título do filme dos irmãos Coen, No Country for Old Men.


De Falla (Dança Ritual do Fogo): http://www.youtube.com/watch?v=Wj6_5qWZCDY
Chopin (Pollonaise, op. 53):



Horowitz toca:
Chopin (Pollonaise, op. 53) Comparem com a de Rubinstein:



Schumann (Kinderzenen):



Republicação de texto postado pela primeira vez em 17/11/2009

O disco “francês” de Milton Nascimento

É sempre bom ouvir Milton Nascimento. Se não lança um disco de inéditos há bom tempo, pouco importa. Devido às mudanças do mercado fonográfico por causa dos downloads piratas e compras de músicas pela Internet, o produto físico – o CD – vende pouco. O lado bom é que acabou aquela “obrigação” dos artistas gravarem um disco por ano. Acho que nem Roberto Carlos faz isso mais. Melhor assim: os lançamentos acompanham o fluxo criativo do artista.

Milton com os Belmondo
No fim de 2009 a gravadora Biscoito Fino lançou o CD Belmondo & Milton Nascimento. Vi o CD exposto em várias lojas da rede Fnac, em Paris. Acabava de ser lançado… em maio de 2008. Não imaginei que fosse sair no Brasil. Portanto, estou com ele há mais quase três anos. É bom, como tudo em que Milton participa, mas o disco não é exatamente dele. A capa francesa é um “dupla-face”: num dos lados, a foto dos Belmondo, no outro, Milton.

Que saudades tenho da energia quase primitiva de suas interpretações dos primeiros discos. Não era apenas uma voz negra especial: era “A VOZ”, com caixa alta. O lp Milton, de 1970, lançado pela EMI – aquele da capa em que tem a silhueta do perfil de seu rosto contra um “Milton” grafado em letras alaranjadas – é um tributo à universalidade da música, dos latinismos à influência dos britânicos Lennon & McCartney. Que letra mais bela tem Amigo, Amiga, onde quem “canta” é a água, que é o “pensamento que viaja”, a água que “quando viaja por terra”, sente-se mais segura “em terras de beira-mar”. Belas imagens do parceiro Ronaldo Bastos. E que diferença faz a percussão de Naná em Pai Grande. A música ganha dramaticidade na mistura que só ele faz com sons percutidos e vozes que formam um conjunto unívoco. De Clube da Esquina e Para Lennon & McCartney não é preciso dizer nada, senão estraga. As participações de Wagner Tiso nos teclados e arranjos, Zé Rodrix tocando de tudo – de órgão a flauta – o carioca Frederiko na guitarra, Tavito na guitarra também, Luís Alves no baixo, o fabuloso Robertinho Silva na bateria e a participação mais que especial da percussão de Naná Vasconcelos foram essenciais para toda essa energia.

Que força tinham o Milagre dos Peixes em estúdio e ao vivo no Teatro Municipal em Cais ou em uma composição alheia como Chove Lá Fora, do pirajuiense Tito Madi, na música em que Clementina de Jesus canta “volto do trabalho, eh” ou em Sacramento. Um dos motores dessa força era o arranjador e tecladista Wagner Tiso e os componentes de seu Som Imaginário. Tiso e seus companheiros eram agentes que impulsionavam a energia anímica que emanava de Milton. Neste CD de Belmondo, a impressão é a de que falta um pouco dessa força primordial presente nos primeiro discos.

O trumpetista Stephane Belmondo e o saxofonista e flautista Lionel Belmondo participaram do álbum Love and Peace, da cantora de jazz Dee Dee Bridgewater interpretando o hardbop Horace Silver, em 1996. Já é um bom pedigree acompanhar uma das melhores intérpretes de agora, além da honra de tocar com o grande pianista e compositor Silver. Não conheço mais nada deles.

É um bom disco? Sim. Falta, porém, aquele “plus”. Na primeira faixa, o belo flugelhorn de Stephane e a vocalise de Milton antecipam a entrada da orquestra para Ponta de Areia. A flauta de Lionel, toques de harpa abrem para a entrada do flugel e da orquestra. É a Canção do Sal. Belo arranjo na impecável combinação das cordas com as madeiras. Mas falta, advinhem o quê? Sal.

Oração é uma das mais belas faixas. É uma adaptação do arranjador Christophe Dal Sasso sobre obra de Cesar Franck. A orquestração é magistral. O trumpete em uníssono com a vocalise de Milton e as cordas de fundo combinam-se harmonicamente. Logo mais, Milton muda o registro da voz. Então é o sax soprano que faz o uníssono. O piano de Eric Legnini, sobre as cordas, faz a passagem do clima da música e, com a entrada do baixo, inicia-se um solo de trumpete. No final é a voz de MN, o sax soprano e as cordas. Dá para emocionar. Pode não ser tão intenso quanto A Chamada, mas vale.

Morro Velho é sempre lindo. A orquestração é sofisticada e apenas valoriza este clássico. Em contrapartida, o arranjo de Nada Será Como Antes não convence.

O disco Minas, em 1975, foi um impacto e deve ter marcado a vida de muita gente. Milton já vinha de uma sucessão de grandes discos, mas este significou a sua consagração. Tinha Beijo Partido, de Toninho Horta, Fé Cega, Faca Amolada, Ponta de Areia, a força dramática de Trastevere e de Simples, a delicadeza de Paula e Bebeto e, especialmente, Saudades da Panair (Conversando no Bar) em brilhante arranjo que modula as situações e ambiências da brilhante letra de Fernando Brant. Elis tinha gravado antes, mas a deste disco era infinitamente superior, que é o mesmo que acontece em relação ao registro dos Belmondo.

Na realidade, o disco não é propriamente de Milton. É sim, um álbum em que Lionel e Stephane Belmondo tocam composições de MN e o têm como convidado. Assim, vale mais a concepção deles e, nesse sentido, é impecável com os sensíveis arranjos de Lionel e Christophe Dal Sasso. Mas, que dá saudades daquela energia das interpretações de Milton, dá.

Veja e ouça Milton e Belmondo em Cais:


Clint Eastwood, o homem que veio do oeste

His name is Clint. Eastwood
Alguém se lembra de que Clint Eastwood foi prefeito de Carmel? Pelo partido republicano, o que nos faz pensar que, gostos musicais são apartidários. Ele ama o jazz, assim como adorava Eisenhower e, até o caso Watergate, apoiou Richard Nixon. Depois disso, suas posições se tornaram dúbias, defendendo causas que estariam mais associadas ao partido democrata.

Não assisti a nenhum dos Dirty Harry, da vida, dirigidos por seu parceiro de muitos filmes, Don Siegel. Não vi Por um Punhado de Dólares ou suas continuações por causa de Clint: vi porque o filme era de Sergio Leone, um dos meus diretores preferidos. Quem fez Era Uma Vez no Oeste não precisa fazer mais nada para ser considerado gênio. Digo tudo isso, porque, confesso, até um certo tempo, tinha preconceito em relação a Eastwood. E preconceito é uma m….! Porém comecei a “rever os meus conceitos” ao assistir Bird, dirigido por ele. Forrest Whitaker faz o papel do maior sax alto de todos os tempos, Charlie Parker. Só fui ver um outro de Clint muitos anos depois: Os Imperdoáveis (Unforgiven, 1992) – grande filme –, e depois, Pontes de Madison (The Bridges of Madison County, 1995), sensível leitura do amor da meia-idade.

No entanto, a razão desse texto não são seus filmes especificamente. São os soundtracks lançados por sua gravadora Malpaso. O álbum lançado em razão do filme Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal (Midnight in the Garden of Good and Evil, 1997) contém verdadeiras preciosidades, a começar pela sempre competente k.d. lang cantando Skylark. A tia do ator George Clooney, Rosemary Clooney, cantora das “antigas”, contribui com Fools Rushes In. Temos belas interpretações de Cassandra Wilson (Days of Wine and Roses), Tonny Bennett (I Wanna Be Around), o basieano Joe Williams (Too Marvelous for Words), Diana Krall (Midnight Sun) e o “Barry White do jazz”, Kevin Mahogany (Laura). As faixas instrumentais também são de primeira: Dream, com o pianista Brad Mehldau e I’m an Old Cowhand, com o sax tenor Joshua Redman. Como curiosidades há um registro de Ac-cent-tchu-ate The Positive, cantado por Clint e That Old Black Magic, com o ator – e bom cantor – Kevin Spacey, protagonista do filme.

Melhor ainda são as músicas dos álbuns The Bridges of Madison County (1995) e seu apêndice, Remembering Madison County. São preciosidades como Dinah Washington cantando I’ll Close My Eyes, Easy Living e Blue Gardenia e Irene Kral, grande intérprete, morta prematuramente em razão de um câncer, cantando It’s a Wonderful World e This Is Always. O destaque dentre as instrumentais são as interpretações do pianista preferido de Miles Davis, Ahmad Jamal, com (Put Another Nickel in) Music! Music! Music! e o consagrado Poinciana. Porém o melhor são as canções interpretadas pela “voz de trovão’, Johnny Hartman. Aqui, Clint Eastwood cometeu um verdadeiro crime: detentor dos direitos de alguns registros da extinta gravadora BeeHive, picotou o genial LP – nunca saiu em CD – Once in Every Life. Nele tem uma versão maravilhosa de Wave, de Tom Jobim e um não menos brilhante Moonlight in Vermont.

Em 1996 aconteceu um concerto em homenagem a Clint Eastwood no Carnegie Hall, com vários músicos de primeira. Quem tiver interessse em assisti-lo, está disponível em DVD: Eastwood After Hours: Live at Carnegie Hall. Grande concerto e grandes músicos.

Ouça algumas preciosidades do gosto de Clint.
Kevin Spacey canta That Old Balck Magic. É um trechinho só, disponível no youtube.




Dinah Washington canta I’ll Close My Eyes. As imagens não têm nada a ver com o filme Pontes de Madison.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Charlotte é melhor que Scarlett

Pelo título, alguns, por antecipação discordarão. Pois, Charlotte Gainsbourg é melhor que Scarlett Johannson. Ou, ao menos, é mais inteligente. Quanto às suas carreiras como atrizes, merecem elogios. E como gosto é uma questão pessoal, aposto que tem gente que acha Charlotte mais bela que a americana. Vá lá, a filha de Jane Birkin, de quem herdou a magreza, seios pequenos, as pernas finas que começam separadas abaixo do púbis e unem-se nos joelhos, e nariz, olhos e boca carnuda do pai, o bardo Serge Gainsbourg, pode não se encaixar nos padrões mais comuns de beleza, mas tem seu charme. “Viva a diferença!”

Belo e enigmático olhar de Charlotte
Desde que Jane Birkin resolveu sussurrar em Je t’aime moi non plus, a impressão é a de que esse jeito “sensual” de cantar replicou-se. Ou será uma característica das francesas, assim como aquela voz de registro “Pato Donald” de muitas cantoras americanas? A mais famosa cantora francesa, Edith Piaf, era dramática. Pequenina e feinha, tinha voz poderosa. Juliette Greco, nem tanto. Françoise Hardy, que fez muito sucesso nos anos 1960 tinha um jeito “doce” de cantar. Pode ser considerada uma antecessora desse gênero. O fato é que hoje, parece ser a tônica dominante. Para efeito de comparação, falo das cantoras “C”: por coincidência, as que cito têm nomes que se iniciam com esta letra. Coralie Clément é uma delas. É uma espécie de Henri Salvador de saias no seu estilo “demi” bossa nova. A outra é a primeira dama Carla Bruni. Agora que está casada com o presidente Sarkozy, resolveram falar mal dela, mas é competente. É inegável o charme com que canta Quelu’um m’a dit ou La ciel dans une chambre. Se a crítica é sobre ela ser a primeira-dama da França, bom, era onde devia estar. Afinal, depois de uma carreira como modelo de sucesso, namorado Eric Clapton e ter deixado Mick Jagger de “quatro”, era o que restava para o sua brilhante carreira. Outra que canta suave é Camille, que é bela, mas é uma sub-Björk, só que cantando em francês. E agora, tem Charlotte.

Charlotte distoa. Seu cd 5:55 tem qualidades. Não se dando muita importância à voz pequena, afinada e nada excepcional, a filha de Serge herdou alguma coisa de seus pais. Inteligentemente, associou-se a Jarvis Cocker, ex-fundador da banda Pulp – sujeito de talento – e a dupla que forma a banda Air, que tem no currículo Virgin Suicides, trilha do filme do mesmo nome, dirigido por Sofia Coppola, Moon Safari, Talkie Walkie e Love2. A atmosfera característica da dupla “acolchoa” a voz de Charlotte. Tel que tu es é uma bela canção. Tem um piano combinando com sons de guitarra, glockenspiel e uma orquestra de cordas de extremo bom gosto. Beauty Mark é outra que merece o adjetivo de belo. É climática e o arranjo orquestral simples faz belo conjunto com a voz de CG. Nas seguintes, Little Monsters e Jamais e Night-Time Intermission, a voz pequena de Charlotte é o perfeito encaixe para as aventuras atmosféricas Air. Everything I Cannot See, começa com um violão e um piano meio “flamboyant”.  A primeira estrofe não é cantada. É “falada” – não uso a palavra “declamada”, que não combina a sua delicadeza. É mais dramática. Certamente tem o tom mais característico das composições de Jarvis Cocker. Morning Song é a única em que Charlotte aparece como coautora junto aos seus parceiros. É um belo final. Depois que surgiu o CD inventaram de interromper a música e, quando a imaginamos terminada, continua. Depois de um silêncio de um minuto, retorna, mais agitada.

No começo deste ano foi lançado o terceiro CD de CG. O primeiro foi lançado quando tinha 15 anos, mas não se deve levá-lo em consideração: tinha a “mão-de-gato” do pai, e era uma adolescente. Hoje está com 38 anos. Vai aí um gap de mais de 20 anos. O que conta é que, desde 5:55 pode ser considerada uma cantora de fato. Inteligentemente, como foi no álbum anterior, escolheu bem o seu parceiro: o cantor e compositor americano Beck. Daí, está certo que não há santo que faça milagre com coisa ruim. Conclusão: mais um bom disco. Desde já, este CD contém uma séria candidata a ser uma das “10 mais” do ano: Heaven Can Wait. A letra é “sacadíssima”: “Heaven can wait and hell’s too far to go/ Somewhere between what you need and what you know/ And they’re trying to drive that escalator into the ground.” “O céu pode esperar e o inferno é tão longe/ Um lugar entre o que você precisa e o que você conhece”: genial. Me and Jane Doe tem um sabor meio country/folk com um backing que parece uma intervenção vocal interplanetária dos Beach Boys. Vanities é um luxo: instrumentação de “viagem”, meio “progressiva”. É o momento de calma que antecede Time of the Assassins.

Trick Pony (não é o One-Trick Pony de Paul Simon), meio blues/rock, tem o “estilo Beck” na parada. A marcação leve/pesada é cheia de sutilezas, de distorções discretas de guitarra e a voz doce de CG. ‘Dandelion’ é outra. Na marcação do baixo e da bateria, Beck distribui cacos de sons orquestrais e um acorde ou outro de guitarra. Tudo se encaixa tão bem! Voyage, que é cantada em francês, tem uma batida parecida, que se interrompe em ataques de cordas, “fundos” de contrabaixos tocados no arco em contraste com uníssonos das cordas médias. Dandelion e Voyage estão entre as melhores do álbum. Looking Glass Blues tem uma pegada mais rock com presença mais forte das guitarras distorcidas. É a faixa bônus do CD. Não soma muito.

No verão de 2007, viajando de férias nos Estados Unidos, Charlotte sofrera uma queda fazendo esqui aquático. Seis meses depois foi ao médico por sentir dores de cabeça frequentes. Submetida a um IRM – acrônimo em francês de “magnetic ressonance imaging” (MRI) –, foi constatado que tivera uma hemorragia interna na ocasião e era sorte que estivesse viva. As duas primeiras músicas referem-se a esse episódio: Master’s Hands e IRM. A terceira é Le chat du Café des Artistes. É a segunda melhor do disco. A voz pequena se equilibra num arranjo orquestral meio fantasmagórico e grandioso. É Beck. In the End é uma música charmosa, quase uma canção de ninar, o som do glockenspiel nos remete àquelas caixinhas de música.

A grande vantagem de Charlotte sobre Scarlett é a de que “esquecemos” que ela é atriz, enquanto, no caso da segunda, não conseguimos deixar de pensar que é uma atriz cantando. Como Marilyn Monroe, o que não é nada mal também.

5:55.



Heaven Can’t Wait, com Beck.


Esse texto foi publicado em 4/2/2010, originalmente.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Scarlett Johansson: ela até canta

Scarlett e o “tiozinho” Woody Allen
É bem antiga essa história de atrizes que cantavam. Uma das raízes do cinema americano está na tradição de musicais encenados nos palcos. Há uma infinidade de cantoras/atrizes, algumas excepcionais, como Judy Garland. Atrizes queriam cantar e cantores queriam atuar. O maior de todos os tempos não era mau ator. Frank Sinatra era um grande showman… e bom ator. Seus programas para a televisão eram divertidos. E seus amigos Dean Martin e Sammy Davis, Jr. também. Existiram, no entanto, atrizes que cantaram e nos encantaram mais pela beleza e pelos rebolados. Não estou falando de Carmen Miranda. Falo de Marylin Monroe.

Scarlett Johansson é atriz desde criancinha, como Drew Barrymore e Shirley Temple. Como Drew, cresceu. Menos escandalosamente, é certo. Alguém se lembra de Scarlett no belo filme O Encantador de Cavalos, dirigido e protagonizado por Robert Redford e Kristin-Scott Thomas? Quem faz a menina Grace tinha treze anos na época. Cresceu e fez Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola. Bob (Bill Murray) é um ator decadente, que é contratado para fazer um comercial para uma fábrica japonesa de bebidas. O blasé Murray conhece casualmente uma garota no bar do hotel – que é casada com um fotógrafo de celebridades – cujo nome é Charlotte. Advinhem o que acontece? A cena dela de calcinha vermelha vai ficar como um dos momentos antológicos, é certo que sem a majestade de um “Isso é o começo de uma grande amizade” proferido por Humphrey Bogart em Casablanca. Saindo um pouco do assunto, o título ‘Lost in Translation’ refere-se às dificuldades do diretor com o tradutor em transmitir corretamente as orientações ao ator americano. Refere-se também a algo que se “perde” nas diferenças geracionais entre uma jovem e um sessentão e entre a cultura ocidental e oriental. Mas, para quem entende um pouco de japonês, o verdadeiro “lost in translation” está nas legendas em português. Por exemplo, o diretor diz mais ou menos: “olhe, não é assim; você tem que fazer uma cara de quem está tomando o melhor whisky do mundo e não um que é vendido num posto de estrada.” Tradução: “Imagine que você está segurando um copo de whisky de primeira”. As frases, longas em japonês, viram uma breve frase no inglês e no português. Não acontece apenas com esse filme. Em qualquer filme japonês, seja de Kurosawa ou Kore-Eda, é assim. Para os que entendem um pouco de japonês é uma diversão cotejar as legendas com o que é falado. A impressão é a de que, ao contrário do que se imagina, a língua japonesa não é sintética.

Scarlett, quando foi dirigida por Sofia Coppola, não tinha 20 anos. Em razão desse filme tornou-se “A” estrela dos “tiozinhos”: quarentões, cinquentões e outros “ões” babaram por Johansson. Coincidência ou não, tornou-se uma das preferidas de um “tiozinho” de respeito: Woody Allen. Trabalhou em Match Point, Scoop e Vicky Cristina Barcelona. E protagonizou A Menina do Brinco de Pérola (Girl with a Pearl Earring), em que faz à perfeição o papel de modelo e serviçal do pintor Vermeer. Mas não dá para imaginar que não tenha se tornado objeto de desejo dos jovens e adolescentes também. Com um portfólio desses, tendo trabalhado com diretores do primeiro time – além de Allen, Redford e Sofia Coppola, Rob Reiner, Christopher Nolan e Brian DePalma – é surpreendente que tenha só 25 anos. Não é pouco. Não bastasse, Scarlett resolveu cantar.

Em 2008 lançou o CD Anywhere I Lay My Head, com composições de Tom Waits, participação de David Bowie em duas faixas e mesmo produtor dos discos de Clap Your Hands Say Yeah. Parece que recebeu uma acolhida morna pela crítica. A revista americana ‘Rolling Stone’ deu 2½ estrelas. Não conheço o disco. Agora, acabo de ganhar o CD Break Up, que Scarlett gravou com Pete Yorn, presente da amiga Vania Nalin, que me trouxe de Paris, quentinho: acabou de sair. Seria um pouco de “babação” dizer que é bom. Com estrelas, ou se é condescendente, ou inclemente. Como não ser uma dessas coisas ou ser ambos? O cd, na falta de melhor termo, é meio “molenga”. Falta um certo punch. Do que falar mal da voz pequena e afinada, mas com certo charme – estarei sugestionado por sua beleza, por aqueles lábios carnudos? –, ou da voz de Pete Yorn, que é bem “normal”, com direito a alguns “gemidos” parecidos aos de Bono Vox. Falta alguma coisa. A voz certinha de Johansson parece um pouco a de Kim Deal (ex-Pixies), que era da banda Breeders. Pra não dizer que não gostei do CD, podemos destacar a música Clean, apesar de a voz de Pete estar parecida demais com a de Damien Rice, autor de The Blowers Daughter, aquela música que (des)mereceu uma versão horrenda, cantada por Ana Carolina e Seu Jorge. Àqueles que não conhecem a original, corram para ouvi-la. É genial. I Don’t Want to Do é uma faixa dramática light, se isso existe. As balançadinhas, às vezes, parecem constrangedoramente primárias. Em Search Your Heart, parece uma sub-Blondie, se quisermos compará-la a mais uma bonitona.

La Johansson tem o aval de diretores de primeira, foi indicada várias vezes para premiações como o Globo de Ouro, é jovem e parece que deseja mostrar que não é “apenas mais um belo rosto nas telas”. Se ela quer nos convencer que é boa atriz, temos o tempo a favor. Um novo dado: terá de nos convencer que é boa cantora também. Quanto a concorrência – digo dos que estão vivos –, temos Jane Birkin, famosa pelo seu Je t’aime moi non plus, composição de seu marido à época, Serge Gainsbourg, nos anos 1970, que com perto de 60 anos lançou álbuns “simpáticos”. Sua filha Charlotte Gainsbourg, que não é lá muito bonita –herdou a magreza da mãe e a rusticidade do rosto do pai – tem provado ser boa atriz, e lançando-se cantora, tem recebido as graças da crítica. A concorrência não é fácil. Charlotte tem se mostrado mais inteligente em escolher parceiros. No disco de estreia, é nada menos que o brilhante Jarvis Cocker, ex-fundador da banda Pulp e, atualmente, em carreira-solo.

Como no mundo poucas coisas acontecem por acaso total, parece que o irmão de Pete é agente de Scarlett.

Veja e ouça Blackie’s Dead.



Texto publicado originalmente em janeiro de 2010

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

E o barquinho vai e a tardinha vem com Diana Krall

Os olhos e a voz de Diana
Dos DVDs de Diana Krall, provavelmente o mais bem produzido é o Live in Paris. Diane é acompanhado por uma orquestra regida pelo pianista neozelandês Alan Broadbent – parceiro do baixista Charlie Haden no Quartet West –, com arranjos de Claus Ogerman, que no Brasil é conhecido pelos arranjos de I, de João Gilberto e de vários álbuns de Tom Jobim. O nosso compositor maior, em uma entrevista, disse certa vez que o brasileiro precisava de um alemão para botar ordem na casa. Dos trabalhos em que Ogerman foi parceiro, talvez o álbum Urubu seja o que melhor desvela a simbiose que existiu entre eles. São arranjos primorosos que remetem à brasilidade de Tom e de Villa-Lobos. Berimbaus, apitos, percussões bem brasileiras se fundem com as cordas, flautas, o oboés, fagotes e tubas. Notas de um piano elétrico – o instrumento que os puristas do jazz adoram odiar – se juntam aos sons da orquestra e constroem um tecido de rara sofisticação. Já deu para notar que é meu disco preferido de Jobim? Ouçam as cordas e as madeiras que introduzem Saudade do Brasil. No meio entra um coro que parece um canto de sereias. Obra-prima.

Se Live in Paris pode ser considerado o melhor no quesito produção, para nós brasileiros, com certeza, o recentemente lançado Live in Rio ocupará um lugar especial. É um hino de amor de Diana ao Rio e à bossa nova. Entremeado com visões deslumbrantes da cidade do Rio de Janeiro, o show tem momentos de pura emoção pela empatia que houve entre o público e a cantora.

Manhã na cidade. O sol nem ainda nasceu. O dono do bar abre as portas e a luz amarelada contrasta com o resto da paisagem urbana azulada. Morro dos Dois Irmãos, Cristo Redentor, o bonde de Santa Teresa, o menino malabar que se exibe atrás de um troquinho, o macaco que exercita seu equilíbrio no topo de um poste de iluminação, o Jardim Botânico e, por fim, Diana sentada em frente ao mar, são o prelúdio para I Love Being Here With You. Na primeira música, insere um “caco” na letra para dizer que está adorando estar no Rio. No primeiro minuto o público já é refém de Krall. Na segunda faixa, Let’s Fall in Love, a introdução é uma guitarra malemolente de Anthony Wilson para a entrada da voz limpa de Diana. Breque. Volta o piano para que o baterista Jeff Hamilton e o baixista John Clayton a acompanhem. A câmera se fixa no seu rosto. Comentando do DVD com uma amiga, babando disse: “como ela é linda!” Ela respondeu: “Eu não acho. Ela é feia, meio queixuda.” Pensei comigo: “Pra quê discutir com madame.” Para algumas pessoas, às vezes é difícil suportar a beleza de outra e, no caso de Diana Krall, o talento também.

De 1993, ano do lançamento de seu primeiro álbum, Steppin’ Out, pela gravadora canadense JustinTime, até agora, adquiriu uma maturidade impressionante. À guisa de seus ciumentos detratores que dizem que piorou depois de casar com Elvis Costello, ela está melhor. Krall transmite uma tranquilidade de quem está de bem com a vida. E é isso que fica patente em sua interpretação meio bossa nova de Where or When?. No dvd entram cenas de Copacabana, arranha-céus e transeuntes atravessando nas faixas brancas antes do início de Walk on By. Depois, canta Cheek to Cheek, de Berlin. A seguir, a bela You’re My Thrill e um emocionante Everytime You Say Goodbye, verdadeira declaração de amor a Costello e a seus filhos, que estão em Vancouver.

Porém, o melhor está para acontecer. Canta So Nice, a versão em inglês do clássico Samba de Verão, gravado por meio mundo, de Marcos Valle. Em Quiet Nights, Diana canta em inglês e o público, em português. De arrepiar. As notas finais de seu piano se fundem à imagem do mar carioca. São tantos os intérpretes estrangeiros que se arriscam a cantar em português que nos acostumamos à estranha sonoridade de nossa língua cantada pelos “gringos”. Acabamos até achando charmoso. Especialmente se é alguém como Diana, que revela seu amor pelo Brasil e pela bossa nova. Sua voz sensual é a perfeita combinação com o gênero. Quando chega a vez de The Boy from Ipanema – vocês conhecem a versão masculina de The Man I Love cantada por Tony Bennett? – de novo o público canta junto e aí é puro êxtase. Emocinante, com direito a algumas lágrimas do baixista John Clayton e expressões de felicidade estampadas nos rostos dos músicos e no dela também.

As favelas cariocas fazem uma parede nas telas de TV. Grande solo em I Didn’t Know Enough About You. A influência de seu pianista favorito, Nat “King” Cole, que como ela, começou tocando e depois descobriu-se cantor está impressa nesse solo e em sua versão de Exactly Like You, no bis. O outro bis é ’S Wonderful, de Gershwin. Esta canção é emblemática no sentido em que, mesmo sendo uma composição americana, João Gilberto em sua gravação de 1977 a transformou num standard “brasileiro”; e a interpretação de Krall é calcada nessa interpretação. É claro que há a coincidência do arranjo orquestral ser do mesmo Claus Ogerman. João não é o pioneiro. Frank Sinatra fez de Change Partners, de Irving Berlin, I Concentrate on You, de Cole Porter e Baubles, Bangles and Beads (Wright, Forrest, Borodine) – clássicos americanos até a raiz – tornarem-se “brasileiras” no mais que célebre álbum Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim. Neste disco – não é mera coincidência –, os arranjos são de Claus Ogerman. O DVD traz um “extra” muito bom com entrevistas com Krall, os músicos e o produtor Tomy LiPuma além do vídeo promocional com o The Boy from Ipanema. É para não deixar de ver.


So Nice, o “samba de verão” de Marcos Valle.

 


O “garoto” de Ipanema.




Grande Walk on By, grande arranjo de Claus Ogerman.





Leia sobre o disco novo (Glad Rag Doll) em: http://bit.ly/SXUK9k

Jeff Beck e Antonioni: água e óleo

Em uma cena do filme Blow Up, de Michelangelo Antonioni, o fotógrafo protagonizado por David Hemmings, vai parar num bar em que a banda de rock Yardbirds está tocando a música Stroll on. Dois de seus componentes, além de Eric Clapton, transformaram-se, mais tarde, em ícones da guitarra no rock. Os ingleses Jimmy Page, Jeff Beck e Clapton formam o grande trio da guitarra e, por coincidência, ou porque o mundo é muito pequeno, tocaram na mesma banda, os Yardbirds. Por conta do destino, Jimi Hendrix, aquele que é considerado o melhor guitarrista de todos os tempos, iniciou sua carreira na Grã-Bretanha, apesar de ser americano de Seattle. Todos moravam na mesma cidade em meados da década de 1960.

Jeff Beck, um ego do tamanho de sua habilidade
Por outra obra do destino, dos três ingleses, o mais prestigiado naquela época, ficou para trás. Clapton, que foi “Deus”, e Jimmy Page, que se consagrou no Led Zeppelin, ficaram mais famosos que Jeff Beck. Várias razões contribuiram para que isso acontecesse. Uma delas, provavelmente, foi o ego “gigante” de Beck e, consequentemente, sua dificuldade de trabalhar com pessoas que pudessem concorrer com ele. Em Blow Up, o amplificador Vox da guitarra de Jeff Beck começa a “chiar”. Ele se irrita, esmurra o amplificador, arrebenta a guitarra e a lança em direção à plateia. O público briga avidamente para pegar a guitarra destruída. O fotógrafo consegue pegá-la. Thomas – que deve ter sido inspirado no grande fotógrafo da “swinging London”, David Bayley – sai com ela e depois, joga-a no lixo. É claro que, sendo Antonioni, aquele objeto fetichizado tem um significado: jogá-lo fora é desprezar as idolatrias ou seus objetos. Numa entrevista, anos depois, Beck disse que odiou Antonioni, dizendo ser ele um cara “metido a intelectual” ou qualquer coisa parecida. Vejam, a “subversidade contracultural” de Antonioni não foi entendida pelo jovem Beck.

Depois desse filme, lançado em 1966, Antonioni dirigiu outro grande filme “contracultural” no seio dos Estados Unidos. Zabriskie Point, produzido pelo marido de Sofia Loren, o produtor Carlo Ponti, é a própria síntese daquele tempo, retratando revoltas estudantis, intermináveis assembleias, movimentos libertários contra a segregação racial. Zabriskie tem um dos finais mais impressionantes do cinema. Um palacete construído no alto de uma montanha, em que capitalistas discutem sobre um grande projeto imobiliário, explode em bilhões de partículas que voam pelos ares em camera lenta acompanhado pela música “psicodélica” de Pink Floyd. Antonioni era um cara antenado, atento aos movimentos do mundo. Ao mesmo tempo em que Godard fazia sua A Chinesa do outro lado do oceano, num discurso caracteristicamente na tradição europeia do pensamento, o italiano Antonioni foi à América para tentar entender o movimento contracultural americano in loco.

A “aparição” de Jimi Hendrix foi “mortal para o “Deus” Clapton. Eric ficara tão impressionado com Jimi, que quase desistiu de continuar a tocar guitarra. O alcool e as drogas não conseguiram destruí-lo e está até hoje na ativa. Deus foi bondoso com ele, pois sobreviveu a Jimi e a tudo. Deus também tem sido bondoso com Jimmy Page. Ele continua inteiro e ainda é referência para várias gerações de novos guitarristas. Jeff Beck, que era o grande do meio dos anos 1960, não teve a glória de seus conterrâneos britânicos e não é, por isso, menor. Continua um grande guitarrista, mas tem uma carreira, por vezes, errática. Tem grandes discos e um deles é o instrumental Blow by Blow, de 1975.

Jeff Beck é um estranho na seara do chamado jazz-rock,  jazz-fusion, jazz-progressivo, e outros “jazzis”. Nomes associados a esses gêneros são músicos de jazz que absorveram a linguagem do rock, como Chick Corea, Joe Zawinul, Herbie Hancock ou Miles Davis. Mesmo assim, Beck, músico nascido sob a influência do rhytm-blues americano, gravou um dos melhores discos fusion de todos os tempos. Acompanham Beck o tecladista Max Midleton, o o baixista Phil Chen e o baterista Richard Bailey. É um belo showcase das habilidades do guitarrista. Há uma química fenomenal com o Fender Rhodes de Middleton e os sons de Beck. A produção do mestre George Martin é perfeita. Abusa-se dos efeitos do estéreo nos sons que saem do piano elétrico: dançam nos canais esquerdo e direito, “etereamente”, flutuando sobre a marcação firme do baixo e da bateria. Beck tem um jeito diferente de tocar, recorrendo pouco da paleta, usando bastante o dedão (usa três dedos, incluindo o polegar) e, abusando da alavanca para distorcer o som, produzindo uma verdadeira miríade de sons possíveis. Além da infinidade de sons que Beck tira de seu instrumento, Blow by Blow é uma coleção de climas que se associam à sugestibilidade de títulos como Air Blower Scatterbrain e Freeway Jam. O momento mais belo, no entanto, é em ’Cause We’ve Ended as Lovers, de Stevie Wonder. É um clássico inesquecível. Para quem não conhece, creia, é um pedaço do paraíso.

Vejam Jeff Beck em ’Cause We’ve Ended as Lovers no Ronnie Scott:



O equívoco de Eliane Elias

O sucesso de Diana Krall fez coisa em alguns. Inclua-se aqui a conterrânea Eliane Elias. Com sólida formação – quase trinta anos de carreira – é uma abençoada pianista. Cabe aqui indagar por que resolveu cantar. Só porque é afinada? É, porém, bem superior com as mãos. Seu pai musical, com certeza é Bill Evans. Não é uma simples emuladora do genial americano morto com apenas 51 anos.

Uma suposição é a de que o sucesso de alguns, como o de Diana Krall e algumas injunções “comercialísticas” de sua gravadora a tenham levado a aventurar-se pelo canto. Se isso resultou em aumento das vendas, eclipsou suas qualidades no teclado. Por obra do destino está casada com o último baixista de Bill Evans, Marc Johnson. Elias antes foi casada com o trumpetista “fusion” Randy Brecker, irmão do saxofonista tenor Michael Brecker, que produziu Eliane Elias Plays Jobim.

Poses sensuais não são exclusividade de Diana Krall
Nat King Cole, antes de cantor, era um pianista e dos bons. O formato trio piano/guitarra/baixo foi uma inovação e teve seguidores como Oscar Peterson, outro genial pianista. Tinha uma voz única, aveludada e abaritonada, sensual, e o que Deus dá não deve ser desprezado. Fez bom uso dela e foi abençoado com milhões de dólares no banco. Canções como Unforgettable, Blue Gardenia e Mona Lisa embalaram milhares de romances e namoros. Nat tem a voz – é no presente, porque é eterno – que penetra nos sentimentos mais básicos da raça humana. A “maldição” – talvez essa palavra seja um pouco forte demais – de ter virado cantor é de que se foi o grande pianista. Foi engolido pelas ondas do sucesso comercial. Teve um programa de TV que, por um ano de muito sucesso, sobreviveu sem patrocínios, apenas com a ajuda de amigos brancos como Frank Sinatra que o prestigiaram com suas presenças. Os anunciantes, com receio de propagandearem seus produtos em um programa comandado por um afro-americano decretaram a morte do Nat King Cole Show, pela NBC. Num documentário sobre Cole, sua mulher comenta sobre a discriminação que sofreram por viverem em um bairro rico. O negro tinha seu lugar e mesmo bem-sucedido não era benvindo morar num bairro de WASPs.

King Cole é o primeiro nome que vem à lembrança quando o assunto é “instrumentistas/cantores”. Há aqueles ocasionais como Maynard Ferguson, Dizzy Gillespie, que não faziam feio quando cantavam. Nos tempos mais contemporâneos, os mais conhecidos são mesmo Diana Krall e o guitarrista John Pizzarelli, que tem voz agradável e bom ritmo e, menos um pouco, o pianista Peter Cincotti e Harry Connick, Jr., que anda meio sumido depois de ter feito fama com a trilha de When Harry Met Sally…, que depois resolveu atirar para tudo quanto é lado, arriscando-se, inclusive a ser ator no belo filme Memphis Belle, em que canta um competente Danny Boy. O mundo está sempre um ponto a mais que sua verdadeira capacidade. Mas não é assim que “caminha a humanidade”?

A menção a Cole não é despropositada: ele é um dos ídolos de Krall, tendo gravado, inclusive, um disco dedicado a ele, All for You, de 1986, que tem um belíssimo Hit that Jive Jack e um sensível Boulevard of Broken Dreams, com um lindo solo de piano e uma delicada percussão abolerada. Como ele, Krall foi abençoada com uma voz especial.

Nas linhas ou entrelinhas, o que aqui se coloca está claro. Eliane Elias embalou-se pelo sucesso dessa fórmula. “Já que Krall canta, por que não eu?” Se não estiver enganado, a primeira vez em que cantou foi na última faixa – Por Causa de Você –, em Eliane Elias Plays Jobim, de 1990. Há uma grande diferença em ser cantora ocasional, soltando a voz aqui ou acolá e fazer um disco em que isso é a tônica.

Em 1998, lançaria Eliane Elias Sings Jobim cantando em quase todas as faixas. Coincidência ou não, a capa e o encarte é uma coleção de fotos em imagens sensuais: na capa, um perfil lânguido e um generoso decote de um vestido estampado curto se recorta tendo ao fundo uma piscina. Quer capa mais sugestiva? Nas imagens internas, de cabelos soltos, faz poses tão “sensuais” quanto. É uma bela mulher, sem dúvida. Mas, precisa? Quando a imagem é melhor que o som, alguma coisa anda errada. Elias é afinada, mas não solta a voz. Nos discos posteriores continuou a soltar a voz presa.

Em 2007, gravou um tributo a Bill Evans: Something for You. Tem bons momentos. Coincidência ou não, Elias sempre esteve próxima a alguns músicos que acompanharam Evans: Marc Johnson, e Eddie Gomez, baixista também, que o acompanhou por muitos anos. No tributo, toca o baixo, Marc Johnson, e a bateria, Joey Baron. Deu um trio afinado que não deixaria Evans com vergonha. O problema desse álbum é o mesmo: é quando canta.

No ano seguinte, lançou Bossa Nova Stories. De novo, imagens lânguidas, desta vez, com visual mais formal e elegante. Lembra Krall pelas piores intenções. Convenhamos: é uma bela cinquentona (completados em março de 2010). Se o visual é deslumbrante, o repertório é aquele mesmo de sempre, alternados de clássicos da bossa nova com “standards” em ritmo idem. É uma fórmula bem desgastada que começou com Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, lançado em 1967, onde o “Rei da Voz” canta Change Partners, de Irving Berlin – vejam, foi composta em 1938! – e I Concentrate on You (1940), de Cole Porter, em ritmo bossa nova. Sinatra e Jobim foram geniais. Alguns desses filhotes são bons e até brilhantes. Mas não é o caso desse Bossa Nova Stories.

Elias não faz feio ao piano. Nessa apresentação, toca com o marido Marc Johnson e o baterista Satoshi Takeshi.