sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Elisabeth Schwarzkopf: beleza e talento

Não me lembro bem, mas um dia a loja de discos do Edgar deixou de existir. Laconicamente, se foi, assim como tantas coisas. Ficaram as lembranças.

Dificilmente passo pela rua Lacerda Franco, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. A única razão de passar por ela era a Edgar Discos. Como a loja, as centenas de LPs que comprei lá não estão mais comigo. Fui trocando por cds as minhas gravações preferidas.

Já na era do CD, adquiri Vier Letzte Lieder, de Richard Strauss, com regência de George Szell e cantada por Elisabeth Schwarzkopf. Desde então, ela é uma das minhas cantoras preferidas e esses lieder estão entre as coisas que levaria para uma ilha deserta.

A bela ariana Shwarzkopf
A música erudita é a seara das grandes divas: Maria Callas, Brigitte Nilsson, Janet Baker, Kathleen Ferrier, Kirsten Flagstad. Eram assim chamadas. Hoje usa-se menos essa expressão; deve ser de época. Ninguém fica chamando Cecilia Bartoli e Anna Netrebko de “divas”. E olhe que elas merecem. Episódios como o de Franco Zefirelli ter sido cruel em dizer que a soprano Daniella Dessì não seria a mais apropriada para ser a Violeta da ópera La Traviatta, no tempo em que Callas competia palmo a palmo com Renata Tebaldi, se as duas não poderiam ser consideradas feias – especialmente Tebaldi –, nunca seriam criticadas ou massacradas por falta de beleza ou esbelteza.

Aos cantores o importante era ter boa voz para seus papéis e ter um mínimo de capacidade interpretativa nos palcos. Num processo que combina bem com nossos tempos, as grandes cantoras passaram a ser belas também. Não é um elogio nem uma crítica. Uma vez, indo assistir a Nijinsky, peça montada por J.C. Violla, encontrei com o jornalista Edmar Pereira, que escrevia no Jornal da Tarde (SP). Ele estava saindo da primeira sessão e eu ia ver a segunda. Perguntei se tinha gostado. Edmar respondeu que sim, mas seria necessário um pouco de imaginação. Disse que era mais ou menos como nas óperas: teríamos de imaginar que “aquela senhora enorme e feia” era a irresistível Carmen da ópera de Bizet. “A gente tem que imaginar que o Violla é o Nijinsky.” Sem desmerecer cantores de outras gerações, o espaço de uma wagneriana como a sueca Birgit Nilsson – não confundam com Brigitte Nielson, ex-mulher de Stallone – seria muito mais acanhado do que sua real dimensão.

Agora, se Maria Callas era uma “diva”, para Elisabeth Schwarzkopf o termo “deusa” seria o mais apropriado. Opinião minha. E ela tinha algo a mais: naquele tempo, quando a beleza não era atributo a ser tão considerado, Schwarzkopf a tinha de sobra. Aquela beleza germânica que, de vez em quando, parecia a de Marlene Dietrich, a deixava majestática nos palcos. Era impossível desviar os olhos. E que voz!

Foi o que me foi revelado em Vier Letzte Lieder. Alguém podia cantar melhor que “La” Caballé. A música que demandava alternâncias bruscas de agudos e graves podia ser cantada “linearmente”, sem que os agudos machucassem seus ouvidos ou os graves soassem “forçados”. Era a diferença da lixa e do veludo. Com que plasticidade os sons navegavam pelas oitavas acima e abaixo. Schwarzkopf era uma autoestrada alemã e Caballé uma estrada federal brasileira. Maldade com Montserrat Caballé, mas é para enfatizar as qualidades da germânica.

Elisabeth era grande, não apenas com Strausss, mas com Mozart e, principalmente com Hugo Wolff, que ela ajudou a popularizar com as gravações que fez nos anos 1950. Schwarzkopf era perfeita, mas como o mundo não é perfeito, na juventude filiou-se ao partido nazista e existe até uma fofoca de que teve um caso com Joseph Goebbels, ministro de Hitler, conforme escreveu o crítico Norman Lebrecht na ocasião de sua morte, em 2006.

Nos anos 1950, Schwarzkopf ligou-se afetivamente ao produtor musical Walter Legge, todo-poderoso da gravadora EMI à época. Mudou-se para a Inglaterra e tornou-se mais conhecida ainda. Existe um DVD – Elisabeth Schwarzkopf – Broadcasts from 1961-1970 (Medici Arts) – muito bom com gravações que a BBC costumava fazer. Os lieder são antecedidos com rápidos comentários dela e de Gerald Moore – um dos maiores acompanhantes de piano da história – sobre eles.

São apresentações descontraídas e aproximam o público “leigo”. O repertório vai de Brahms, Schubert, Wolf, Mahler, Schumann, Verdi, Gluck, Menotti e, como não podia faltar, de Mozart e de Richard Strauss. Uma parte menor é a apresentação dela com a Ochestre National de l’ORTF, sob regência de Berislav Klobucar. Falam também que Elisabeth era impopular com seus pares musicais, o que nos faz imaginar que era antipática. Nas apresentações na BBC, parece o contrário.

Morreu com 90 anos. Como Leni Rieffenstahl, que morreu com 101, ficou marcada pelas ligações “estranhas” com o hitlerismo. As duas, em comum, eram belas e tremendamente talentosas.

Recomendações de Vier Letzte Lieder:
Renée Fleming, Houston Symphony Orchestra, Christoph Eschenbach (RCA)
Jessye Norman, Kurt Masur, Gewandhausorchester Leipzig (Philips)

Veja e ouça:
Elisabeth Schwarzkopf/ Im abendrot:




Jessye Norman/ Im abendrot – para comparar:

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Antes do Moby

É impressionante ver o tanto de pessoas que estão no limiar da sociopatia no Brasil. Furam filas sem o mínimo constrangimento, dão “carteiradas” para que possam entrar de graça e acham normal, ou traem amigos por circunstâncias sem nenhum pudor ou remorso. Uma conhecida, por exemplo, estacionou numa vaga de idosos e “ordenou” que seus amigos a esperassem no carro enquanto faria um pagamento no banco. A censura ficou no ar e ninguém ousou repreendê-la, por “educação”. Num semanário de circulação nacional, tempos atrás, a matéria de capa era sobre “ser esperto”. Lastreado por pesquisas de comportamento, afirmavam que no mundo de hoje, no mercado de trabalho, ser honesto ou ético passou a ser defeito. Pessoas desse tipo passaram a ser vistas como “otários” e pouco competitivas. Sem querer ser um paladino da honestidade ou aquele que não mente – segundo uma amiga, existem mentiras e mentiras, e classifica aquela em que você culpa o atraso no trânsito como “mentira branca” –, de hoje em dia, nos surpreendemos com os que creem no outro e não duvidam por antecipação.

No fim do mês de fevereiro, adquiri pela Internet um par de ingressos da apresentação do americano Moby, que aconteceria em 23 de abril. Três dias antes do show notei que o envelope com os ingressos não estava no lugar em que deveria estar ou, pelo menos, onde imaginava devesse estar. Nessa noite fui dormir às três da manhã, no dia seguinte às quatro, e não os encontrei. Enchi um saco de lixo de 20 quilos com papeis inúteis, jornais e revistas antigas. Na quinta-feira liguei para a Ticketmaster, responsável pela venda, e, depois de algumas dezenas de tentativas falei com uma atendente que disse serem os ingressos como dinheiro: valia para quem estava de posse deles. Mesmo argumentando que tinha todos os comprovantes, inclusive com o registro dos lugares comprados e que não existia a mínima possibilidade de que alguém estivesse com eles, respondeu que era impossível a emissão de uma segunda via. No dia anterior havia mandado uma mensagem ao SAC da Ticketmaster. Responderam um dia depois com o mesmo discurso que ouvira ao telefone. Na sexta, dia do show, comentando sobre a perda, um amigo sugeriu-me que ligasse ao Procon. Uma mulher muito atenciosa orientou-me a ir ao Juizado de Pequenas Causas e pedir uma liminar. Foi o que fiz. Nada feito. Nem adiantava: a juíza já tinha ido embora… eram três da tarde. A chuva que estava armando desabou quando saía do juizado.

Decidimos ir assim mesmo, com todos os comprovantes possíveis em mãos. No caso de insucesso, compraríamos novamente, ansiosos que estávamos de ver o show de Moby. Chegamos bem cedo – 20h30 – para o show que iniciaria às 22h. Logo que chegamos, procurei informação com um “homem de preto”, que foi muito atencioso e orientou-nos de falar com uma das bilheteiras. Explicamos sobre o acontecido, já com todos os argumentos “em mãos”. Ela pegou os papéis, desapareceu por alguns minutos e, voltando, disse que esperássemos até dez minutos antes do show e, certificados de que os lugares ficassem vazios, autorizariam nossa entrada.

Para fazer hora, fomos tomar alguma coisa num dos botecos que ficavam na rua de trás. Bebemos uma caipirinha de quinta e voltamos ao Credicard Hall. Esperamos um pouco e uma mulher de preto com um walkie-talkie à mão aproximou-se de nós e nos colocou dentro do teatro. Tratamento vip: subiu conosco no elevador e nos deixou com outra “moça de preto”, que nos levou até os lugares. O alívio e alegria de estar lá foram comemorados com uma dose de scotch e ela, uma de Absolut. Perfeito. Nem irritados com a hora e meia de atraso para o início do espetáculo.

Não é lá muito agradável quando alguém desconfia daquele que afirma estar dizendo a verdade. Pelo número de pessoas que seguem os princípios da “lei de Gerson”, em que o “importante é levar vantagem em tudo”, é plausível que todos duvidem de todos. Nesse universo do “um engana o outro”, quando, prontamente, o que é dito não é posto no poço das dúvidas, a surpresa é grande. E foi o que aconteceu na noite de sexta-feira no Credicard Hall, o que foi um bom prenúncio para o ótimo show que ocorreria logo mais. Isso nos faz crer que nem todo mundo estaciona em vagas de deficientes físicos – sem ser – e vai embora sem se preocupar.

Uma pílula de Moby. Ele faz um cover acústico (a que gravou em disco é “pauleira”) de uma de suas bandas favoritas, o Joy Division: New Dawn Fades

Moby em São Paulo

O nome Richard Melville Hall revela o parentesco de Moby com o escritor Hermann Melville. É autor de um clássico da literatura americana: Moby Dick, que teve algumas traduções para o português, sendo a última um catatau de mais de 600 páginas traduzida por Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza e lançado pela Cosac & Naify. É um desses livros que são mais comentados que lidos, um pouco como o Don Quixote, de Cervantes. A história, como todos devem conhecer, é a saga vingativa do capitão Ahab que “reencontra” o cachalote branco que lhe decepara a perna. Melville é autor de um relato “pra lá” de curioso, uma breve narrativa sobre um escrivão – Bartleby –, que vai trabalhar num escritório e se recusa sempre a fazer alguma coisa que seu patrão lhe ordena respondendo com um “acho melhor não”. Com essa negativa, uma série de situações tragicômicas ocorrem.

Não é possível identificar algum traço de linhagem genética aparente no compositor, instrumentista e cantor Moby, a não ser o imenso talento, convenhamos que, num meio bem mais rápido de se fazer sucesso que a literatura: a música. Moby não tem nenhuma característica do capitão protagonizado por Gregory Peck no filme dirigido por John Huston e muito menos o espírito aventureiro de seu ancestral. É franzino, cara de bom moço e ‘vegan’ – não comem alimentos de origem animal nem seus derivados como o leite e o queijo e não usam produtos como cosméticos que podem ter sido testados em animais. É um craque da música eletrônica e muito mais que um DJ. Seu som pode ser tão poderoso quanto o do Chemical Brothers ou Prodigy, no entanto mais rico em texturas harmônicas e melódicas. Para muitos o LCD Soundsystem pode estar no céu. Esses vão discordar dos que preferem Moby: questão de gosto.

Nesses anos de carreira, tem demonstrado versatilidade em transitar por vários gêneros musicais e, principalmente, sabiamente mesclá-los. É também multiinstrumentista e sabe como ninguém criar ambiências sonoras, muitas vezes simples, mas de estonteante beleza que caem bem no gosto do público. Abusa dos ritmos eletrônicos mas não abre mão da energia da bateria analógica,da guitarra e da percussão. Na apresentação em São Paulo, no bis, tocou um Whole Lotta Love, do Led Zeppelin, inesquecível. Desde 1999, ano em que foi lançado Play, que num efeito de lenta explosão ultrapassou a marca de um milhão de discos vendidos, Moby lançou uma profusão de hits que invadiram pistas de dança, trilhas de cinema e música incidental para filmes publicitários. É natural que na turnê brasileira tenha cantado uma porção delas. Em shows mesmo naqueles em que se apresentam músicas do “último CD”, são necessários pontos de sinergia e eles são as músicas mais conhecidas, aquelas em que o público vai cantar junto, dançar, espernear e gritar.

A cena era despojada com algo que deviam ser cortinas que pareciam folhas gigantes, dois carecas – Moby e o baterista – e quatro representantes do sexo feminino, todas de preto, duas em cada lado do palco: uma loira de cabelos longos e seu baixo Fender, uma morena ao fundo nos teclados, do outro lado, um oriental de microssaia tocando violino e uma cantora negra – Joy Grant – fazendo os vocais principais. À entrada climática de Seated Ways seguiu Extreme Ways, música que foi utilizada em Ultimato Bourne. Êxtase do público com a batida pesada da bateria e marcação do baixo em ‘Extreme…’. O restante foi essa mescla de músicas do último CD – Wait for Me, que tem um mood mais climático e menos batido – e de sucessos conhecidos. Foi um show impecável com apenas pontos altos e o que sobressaiu foi a levada mais rock com Moby empunhando a guitarra. Além do excepcional cover da canção de Page & Plant, em homenagem à sua cidade, cantou Walk on the Wild Side, de Lou Reed. Desde já está na lista dos melhores shows do ano. Empolgante.

Veja e ouça:
Extreme Ways:


Moby - Extreme Ways
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We Are All Made of Stars:


Moby - We Are All Made Of Stars
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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Pra cima com a viga, moçada

Chuvas, tempestades, terremotos e tsunamis têm castigado o mundo. No meio de tanta desgraça, quase despercebidamente, J.D. Salinger, autor de Apanhador no Campo de Centeio morreu. É um livro que marcou algumas gerações posteriores à Segunda Grande Guerra e é bem possível que as atuais ainda sejam capazes de se impressionar com as desventuras de Holden Caulfield. Uso “morte” em vez de “desaparecimento” pois Salinger há muito tinha “desaparecido”. Do mesmo modo que é estranho a alta exposição a que estão sujeitos até profissionais não exatamente ligados ao show business – como os escritores – é também o “deixem-me só” de JDS. Não é o único. Já houve Rimbaud – era mais fácil “sumir” antigamente –, e depois do autor de Apanhador, temos o exemplo de Thomas Pynchon e, no Brasil, o de Dalton Trevisan.

Em uma matéria numa publicação americana, acho que no New York Times, ficamos sabendo que Salinger circulava tranquilamente na pequena Cornish, New Hampshire, e gostava de ir à igreja pelos almoços com rosbife que lá eram oferecidos a US$ 12 e era visto sempre a fazer as compras no supermercado Price Chopper. Nada mais prosaico para quem ficou conhecido como “o” misterioso escritor.

É muito reducionista – e até maldade – relacionar a sua importância à influência “maldita” que possa ter tido sobre palguém como Mark David Chapman, que assassinou John Lennon. Parece que Apanhador era seu livro preferido e o carregava quando descarregou sua arma acertando quatro tiros no cantor após pedir um autógrafo. É fazer pouco de alguém que, com sua obra, influenciou mais de uma geração. Depois de Apanhador…, li quase tudo o que escreveu – o que não é muito – e em muitas ocasiões, tratei de presentear amigos e amigas que não conheciam JD. Mas meu livro preferido é Nove Estórias. Sempre gostei de títulos. Atraiu-me pela estranheza, o conto Um Dia Ideal para os Peixes-Banana. Tornou-se um dos meus preferidos.
De 50 a 50: do início da década de 1950 são mais de 50.
Jimmy Page, Jeff Beck, Eric Clapton têm mais de 50 anos.
Raise High the Roof Beam, Carpenters, em sua primeira tradução no Brasil, chamou-se ‘Para Cima com a Viga, Moçada!’ e saiu pela Editora Brasiliense. Na outra tradução, de Jorio Dauster, pela Companhia das Letras, chamou-se Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira. Prefiro a primeira porque o “Para cima” me parece mais enérgico e tem mais a ver com os “clamores” da juventude.

Salinger é pretexto apenas para o título deste texto e também por representar uma época em que houve a explosão de uma das manifestações musicais mais poderosas: o rock. Independente de considerar-se uma manifestação da baixa cultura, como muitos pensam, foi uma ferramenta poderosa para uma radical transformação nos costumes. Foi ferramenta e também foi fruto. E qual é o instrumento ícone do rock: a guitarra. É o instrumento em que o acústico torna-se elétrico, amplificando-se em poderosos decibéis.

Davis Guggenheim (diretor do “filme catástrofe” Uma Verdade Incoveniente) conseguiu juntar três grandes guitarristas de diferentes gerações e montar um documentário. É um prato cheio para os amantes do rock e até para os nem tanto. A Todo Volume (It Might Get Loud), título desse filme feito em 2008, passou quase despercebido pelo público ao ser exibido comercialmente. Vi na Mostra Internacional de Cinema em 2009 e digo que gostei. Sem muita autocrítica. Paixões não são lá muito autocríticas. Que prazer! Lembrou-me que na minha adolescência apaixonara por Led Zeppelin e pela guitarra de Jimmy Page e também que, ao descobrir o outro Jimmi – este com “i” – passava meus dias a ouvir seus discos. Faço parte de um em milhões de pessoas.

As três gerações são Jimmy Page, dos anos 1960/70, The Edge, da banda U2, uma das mais longevas do universo do rock – estão na estrada desde início dos anos 1980 e continuam bons –, e Jack White, do White Stripes. É incrível o respeito que um tem pelo outro: cada um aprendeu com o outro e admiram-se. É incrível que o Led Zeppelin ainda impressione o adolescente dos anos 10 deste século. São 40 anos de lá para cá. A guitarra poderosa de Jack White, nos primeiros discos do White Stripes, são puro Page. E isso não é demérito. E a White cabe tocar com um de seus ídolos.

É um verdadeiro presente àqueles que gostam de rock, difícil de descrever. É melhor vivê-lo assistindo a esse filme. É uma sinergia incrível quando tocam juntos os hoje clássicos da dupla Page & Plant, como In My Time of Dying ou I Will Follow, um dos primeiros sucessos do U2. E é demais ver como a pulsão primordial do rock continua viva nas mãos de jovens como Jack White, brilhante guitarrista e cantor. Sua energia não se esgota em vários discos lançados pela banda White Stripes e seus outros projetos como a banda Raconteurs e, mais recentemente, o Dead Weather.

O final do documentário guarda uma pérola: os três interpretam The Weight, uma das grandes composições de Robbie Robertson, do The Band. O DVD foi lançado em duas versões, a normal e em BlueRay.

Buenos Aires, miles away

Toda vez que vou a Buenos Aires não deixo de passar por duas lojas em busca de CDs, DVDs e livros: a Ateneo, da av. Santa Fé, e a Miles Discos, que fica na Calle Honduras. Qualquer brasileiro, por mais inculto que seja, deve conhecer a Ateneo. É considerado ponto turístico por ser um teatro adaptado e, realmente, é bem bonito, até para os analfabetos. Para os que se ligam à cultura é prato cheio. Cada vez que vou, procuro o setor dos artistas argentinos e sempre encontro um novo título do grande Hermenegildo Sábat. Conheci-o através dos desenhos que fez de figuras importantes do jazz e da música argentina. Meu amigo Alberico Cilento, que o conheceu, disse que, em uma reunião de apreciadores de jazz, em São Paulo, fez um desenho do ídolo de cada um dos que estavam presentes. Ele ganhou um do pianista Erroll Garner. Desta vez, encontrei um sobre Astor Piazzolla e outro sobre Charlie Parker, que se chama El pájaro murió de risa, ambos da Universidad Nacional de Quilmes Editorial. Os desenhos de Sábat são quase pinturas. Possui uma técnica especial com aguadas de nanquim e aquarela. Escreve também. Seus livros são uma mescla de textos e desenhos. Da penúltima vez, comprei um de Fernando Pessoa, o que me faz concluir que os interesses de Sábat não se resume à música.

Charlie Parker por Hermenegildo Sábat
Especial porém, na minha opinião, é a Miles Discos. Fica em Palermo Soho – um bairro que parece ao Soho novaiorquino e à Vila Madalena, São Paulo – e tem algumas características que me fazem lembrar de casas de discos como a finada Edgar Discos e uma outra que fechou há mais ou menos dois anos: a Nuvem Nove, que ficava na rua Clodomiro Amazonas, SP: essa deixou uma grande legião de saudosos. Ao contrário das grandes redes como a Fnac, a Livraria Cultura ou a Livraria Saraiva, muito impessoais, essas lojas eram pontos de encontro e possuiam a particularidade de podermos ser amigos dos donos, que sabiam tudo o que tinham à venda, davam palpites do que achavam bom ou não e, até, no caso da Nuvem Nove, o Zé trocava discos se, porventura, não tivesse gostado. Uma que ainda mantém algumas dessas características, em São Paulo, é a Pop, que fica numa galeria situada à rua Teodoro Sampaio, região tradicional de comércio de instrumentos musicais.

Conheci casualmente a Nuvem Nove quando era uma pequena loja em que se vendia, principalmente, discos usados. Seus únicos atendentes eram o Zé Carlos, o dono, e seu irmão Ricardo. Gostava de brincar com eles dizendo que tinha mais discos que eles. E era verdade. Aumentou a clientela e o número de títulos. Era frequentada por uma fauna de amantes dos mais variados gêneros musicais. Os axés, pagodes, Sangalos e Mercuries eram comprados pelos clientes acidentais das horas de almoço durante a semana. Os sábados eram especiais: na certa, depois de acordar, era onde marcava meu ponto.

Certamente, num lugar como Buenos Aires, para o turista seja mais difícil de se ter essa intimidade, mas a impressão que se tem é a de que seus habitantes e frequentadores contumazes conheçam seus donos. A Miles Discos é uma pequena loja em que tudo parece meio improvisado, meio apertada, entulhada de discos em uma sala e em outra, livros. Aos poucos, estão ampliando os serviços: montaram um Café e uma lojinha – Miles Cine –, que vende desde camisetas a quinquilharias ligadas ao cinema e à música. No sábado pré-páscoa, do outro lado do balcão tinha uma pessoa de cabelos longos e grisalhos, barbudo, com aqueles óculos básicos de aro redondo. Paguei os discos e DVDs que comprara para uma mulher de belos olhos azuis claros e longos cabelos grisalhos. Bonita, e não tingia os cabelos, coisa quase inimaginável de se ver em São Paulo e que não é tão incomum em Buenos Aires.

Fachada da loja que fica na Calle Honduras 4.912
Onde mais encontraria um CD do barítono Thomas Quasthoff, conhecido pelas gravações que fez dos lieder de Gustav Mahler sob a regência de Pierre Boulez, cantando – e bem – jazz e, ao mesmo tempo, o último CD de Dave Holland e um do clarinetista Gianluigi Trovesi com o acordeonista Gianni Coscia interpretando Kurt Weill? Só isso já faria valer a visita. A outra são os preços que se pratica no nosso país vizinho. Onde seria possível achar um CD da pianista brasileira Eliane Elias cantando bossa nova por 16 reais, ou o CD Rambling Boy, de Charlie Haden por 16,70 reais? Pode?

Imagino que Miles Davis tenha sido a inspiração para o nome da loja. Ouça o clássico So What.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Eu e a brisa


O ano de 1967 foi pródigo em revelar ou consolidar nomes hoje consagrados na música brasileira. Sem dúvida, 1967 foi especial. Foi a época dos grandes festivais de música e o país vivia a desesperança de presenciar o recrudescimento do regime militar e os brasileiros mal sabiam administrar suas angústias e aspirações. Dos festivais patrocinados pelas emissoras de televisão, o da TV Record era o que mais atraía a atenção. No III Festival de Música Popular Brasileira, os premiados foram Edu Lobo e Capinan com ‘Ponteio’, Caetano Veloso com Alegria, Alegria, Gilberto Gil com Domingo no Parque, Chico Buarque com Roda Viva e teve como finalistas Dori Caymmi e Nelson Motta com O Cantador e Sydney Miller com Maria, Carnaval e Cinzas. No mesmo ano, o II Festival Internacional da Canção Popular, no Rio, da TV Globo, revelaria Milton Nascimento.


Johnny nasceu Alfredo José da Silva
Neste festival da Record, não se classificou uma das mais belas canções de todos os tempos: Eu e a Brisa, de Johnny Alf. Tornou-se um hit, mas, de algum modo, reforçava a sina de seu autor. Alf, cuja carreira começou num longínquo 1952, e considerado um dos precursores da bossa nova, mais uma vez, ficou em segundo plano. Quando alguém comenta sobre aqueles que foram injustiçados, sempre lembram-se dele. E, pensando bem, é um enigma. Ruy Castro em sua coluna da página 2 da Folha de S. Paulo comentou que alguns falam em racismo. E diz que isso é pouco razoável, pois Jorge Ben, Paulo Moura, Dolores Duran, Baden Powell e Gilberto Gil “não eram arianos”. Uma possibilidade é a de que tenha ido um pouco na contramão da história. Carioca da Vila Isabel, em vez de ficar em sua cidade natal, a terra da bossa nova, mudou-se para São Paulo.

Johnny nasceu Alfredo José da Silva. No Instituto Brasil-Estados Unidos (Ibeu), onde estudava inglês, era chamado de Alf. O Johnny veio depois, por sugestão de uma amiga americana. Pianista de formação erudita – apesar de der filho de uma empregada doméstica, aprendeu a tocá-lo com Geni Borges, que era amiga da família para a qual sua mãe trabalhava –, descobriu o jazz mais tarde e teve Nat King Cole e Sarah Vaughan como ídolos. No Sinatra-Farney Fan Club conheceu Paulo Moura, Nora Ney, Luiz Bonfá e Fafá Lemos – um dos poucos violinistas de jazz no Brasil –, que o apresentou ao pessoal da boate Montecarlo, de Carlos Machado. Não deu certo por causa de sua timidez. O verdadeiro empurrão viria de Dick Farney e passou a tocar na casa do radialista César de Alencar. Pouco depois, na boate do Hotel Plaza, em Copacabana, teria como espectadores habituais João Gilberto, Tom Jobim, Nara Leão, Carlos Lyra, João Donato, Luiz Eça e Dolores Duran. Em 1953 comporia Rapaz de Bem. Pois então, Alf era bossa antes do surgimento da bossa nova. Johnny tinha uma voz suave e incorporara modulações vocais tipicamente jazzísticas e suas harmonias no piano traziam um frescor que iria efetivamente transformar a música no Brasil.

Mudou-se para São Paulo e nos últimos três anos morou em Santo André. Nos anos 1970 morou em três lugares do bairro da Mooca, na zona leste da capital. Andava incógnito pelas ruas do bairro. Ia sempre à quitanda de dona Maria de Fátima, passava pela banca Falcão, que ficava na rua Fernando Falcão, perto da av. Paes de Barros, pegava alguns filmes em VHS na Shock Vídeo e frequentava a Casa de Mãe Augusta. Johnny era do candomblé. Quase ninguém sabia que aquele morador da Mooca era um dos grandes nomes da música brasileira. Alf não reclamava por falta de reconhecimento. Pelo contrário, achava-se reconhecido. Não faltava lugar onde pudesse tocar, era admirado pelos amigos, e isso bastava. É correto dizer que ele não teve a consagração que merecia em vida, mas a impressão é a de que isso não era motivo de amargura.

A brisa, propriamente dita
Segundo Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, dois dos maiores especialistas da música brasileira, Eu e a Brisa fora composta para ser cantada no casamento de um amigo, mas o padre proibiu que fosse cantada na cerimônia. Pelo jeito, o júri do Festival também não. Mas tornou-se um dos grandes sucessos do autor da igualmente belíssima ‘Ilusão à Toa’. Márcia a defendeu, com arranjo de Briamonte. Além do próprio Alf, muitos a gravaram: Maysa, João Gilberto, Leny Andrade, Caetano Veloso, Gilberto Gil e até Baby Consuelo. É difícil estragar uma música tão bela.

Nas horas de descanso, sento numa cadeira de praia, daquelas bem ordinárias, de náilon, no quintal, e, enquanto fumo um charuto, leio, ouço música, tenho a companhia da minha cachorra waimaraner Brisa que fica do meu lado. Eu e ela: eu e a Brisa.

Temos vários vídeos disponíveis na internet com vários intérpretes. Basta digitar seu nome. Existe em DVD o registro em Ensaio, programa dirigido por Fernando Faro. Paulinho da Viola conversa longamente e Johnny revela suas paixões e influências do mundo do jazz.


Leny Andrade canta Ilusão à toa.


quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Ella Fitzgerald, a mulher invisível

Ella, na língua portuguesa, tem uma característica que a torna única: a letra “L” dobrada. E, sem dúvida, é única. Não que seja a melhor de todos os tempos no jazz. Um número considerável de pessoas, sim, a consideram. Outras milhares preferem Billie Holiday e Sarah Vaughan. Alguns podem dizer que esquece-se de Carmen McRae… ou Anita O’Day? O certo é que nessa mania de listas de “melhores” que a humanidade gosta de fazer, as três primeiras são as mais lembradas. Por uma coincidência todas são negras. É difícil alguém colocar as brancas Anita, June Christy, Peggy Lee, Doris Day ou Chris Connor neste panteão, mas todas são ou foram ótimas. Essas unanimidades são estranhas. Então B.B. King é a maior figura do blues de todos os tempos?

Ella Fitzgerald
Pouco se sabe da vida de Ella Fitzgerald. Que foi casada com Ray Brown por alguns poucos anos, sim. Eram dois pesos pesados. A anedota que corre é de que Brown estava acostumado com grandes volumes, já que tinha de empunhar e carregar seu baixo acústico. Em sua vida não aconteceram grandes tragédias como as de Billie, nem embrenhou-se em drogas como Rosemary Clooney, ou emborcou-se na vodca como Anita O’Day e nem sofreu desgraças pessoais como casamentos tempestuosos e nem quebrou hotéis como astros de rock. Não deu muitas entrevistas. Ella ficou conhecida pela voz. Sem atrativos físicos especiais como os de Julie London, da platinada Peggy Lee, sem a beleza enigmática de Billie Holiday, parece que era conhecida por seu mau humor que nunca se desvelou em suas apresentações públicas. Sua carreira, afinal, foi acontecendo sem sobressaltos. Foi como se houvesse apenas a voz e seu corpo físico fosse algo abstrato, independente e pouco percebido. Seu canto sobrepujou em muito sua pessoa física, o que hoje seria inconcebível. O mundo é das celebridades que, junto do talento, como Amy Winehouse ou Janis Joplin – cantam ou cantavam e muito – mas têm suas vidas tempestuosas desnudadas ao público ávido por “muito barulho por nada”.

Ella começou cedo, com menos de vinte anos. Descoberta pelo baterista Chick Webb, tornou-se crooner e nem a morte prematura de seu mentor foi obstáculo à sua ascensão. Antes de gravar pela Verve Records foi contratada da Decca. Alguns registros dessa época tornaram-se indissociáveis de Ella. Na Verve, sob a direção de Norman Granz, gravou uma série de songbooks com standards dos compositores como os irmãos Gershwin, Harold Arlen, Cole Porter e outros notáveis que revolucionaram a música americana do século XX.

Na Decca o repertório foi mais variado e, provavelmente, não era tão focado no jazz. Alguns dizem que era a mão do produtor e manager Milton Gabler. Existe, no entanto, mais de uma vez Ella disse ser uma cantora de baladas. E, realmente, nesse gênero era incomparável. Seu My One and Only Love é daquelas de amolecer até os corações dos broncos e brucutus. Ella quando iniciou a carreira tinha uma voz de menina. E é uma das poucas que conseguiu mantê-la quase igual durante a carreira. As de Sarah Vaughan e Billie Holday ou mesmo da brasileira Leny Andrade, para o bem ou para o mal, sofreram transformações radicais. Compare-se os registros de Holiday da gravadora Columbia, década de 1930 e seus registros dos anos 1950 pela Verve. A limpeza da voz ainda não castigada pelos excessos fazem das gravações da Columbia, em que é acompanhada por luminares como Lester Young e Teddy Wilson definitivas. Com o tempo, foi ficando pesada e sofrida. Com certeza, muitos preferem suas gravações tardias, pela dramaticidade ou por uma tendência natural do ser humano de se emocionar – ou se extasiar – com a desgraça do outro. Com Sarah aconteceu a mesma coisa. Basta comparar as primeiras com as últimas registradas pela gravadora Pablo. Que força tem Send in the Clowns, de Stephen Sondheim, na voz espessa e rascante de Vaughan, às vezes incômoda pelo excesso de vibrato, mas que qualidade!

Pois com Ella, cuja presença se devia, simplesmente, à voz, apesar de se dizer que teve duas uniões – fora a com Ray Brown – que não são paradigmas de felicidade: o primeiro era traficante de drogas. Anos depois, dizem, teve um relacionamento com um norueguês que foi preso por roubar uma antiga namorada. Pelo que parece, não teve sua carreira afetada por esses episódios e nem foram notícias na época. É como se sua vida particular tivesse sido invisível.

Bom, falando menos da vida alheia, o que importa e o objeto aqui são algumas canções que são só d’El(l)a. Uma é A-Tisket, A-Tasket, de 1938. Ella gravou e ninguém mais conseguiu cantá-la com aquele frescor e leveza. Dee Dee Bridgewater gravou no disco-tributo ‘Dear Ella’ e existe outro registro no DVD We All Love Ella, com a filha de Nat “King” Cole, Natalie. Registro mais duas: (I Love You) For Sentimental Reasons, que canta com The Delta Rhythm Boys, e If You Can’t Sing It) Mr. Paganini, de Sam Coslow. De Sentimental Reasons, tem a de “King” Cole, claramente calcada na de Ella – It’s Only a Papermoon é outra que ele canta, não sei se é coincidência. Mr. Paganini é superlativa: lindo arranjo, belos scats, riffs de sopros, alternâncias de clima. Ouvir esta música é imaginar um mundo divino e maravilhoso.

Este texto era para ser uma introdução a mais duas preferidas que vão ficam para outra vez: Stairway to the Stars e I’ve Got the World on String.

Veja Ella cantando Mr. Paganini:

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O Gismonti que eu gosto

Saudações é o nome do último álbum gravado por Egberto Gismonti. São dois CDs. Não sei se serão lançados aqui. Há muito tempo – uns trinta anos, creio –, EG criou um selo – Carmo –, pela EMI. Alguns discos dessa gravadora foram lançados no mercado europeu e, no Brasil, nada. Admirável o interesse das gravadoras. Pelo que consta, a EMI, dona dos fonogramas, recusa-se a disponibilizá-las, enquanto EG quer doá-las. Em entrevista em 2004, disse que não entende como não pode dar alguma coisa que é sua.

Apesar da produção intensa, há tempos o hiperativo Egberto não lançava um disco. O CD 1 é uma peça orquestral para cordas, cujo nome é Sertões: Veredas. A referência a Guimarães Rosa é casual: não tem nada a ver com o livro. Porém, título mais “regional”, impossível. Ironia: EG é o mais internacional dos nossos músicos. Sua formação musical é um “mix” de sua formação erudita – estudou com Nadia Boulanger, mestra dos clássicos (Aaron Copland), dos “populares” (Michel Legrand) e dos “nem tanto eruditos” (Philip Glass) – e seu interesse pela música popular.

O Sertões…, em São Paulo, mereceu matérias nos dois maiores jornais. O jornalista João Marcos Coelho ocupou uma página para falar desse lançamento. Na Folha de S. Paulo deram meia página. As duas são elogiosas, como não poderiam deixar de ser. Concordando, mas já discordando um pouco, acho que há um certo exagero nas loas. A Suite, apesar da competência de sempre, é desigual. Desconfio um pouco de obras ambiciosas demais. Nas notas internas de Lilian Dias, tiradas a partir dos depoimentos de Gismonti, Saudações tem como subtítulo tributo à miscigenação. EG pretende um “amálgama” do “culto” e o “popular”. Por excelência, uma orquestra de cordas faz parte da tradição europeia acadêmica. Ela é dividida em sete partes que compõem uma suíte, forma musical clássica. Vamos a alguns esclarecimentos dos propósitos de EG: “Beethoven é aqui uma presença constante. O tema é a interligação da cultura mundial que encontra no Brasil, na miscigenação, uma lente de aumento, um foco de expressão. O tema é também a melancolia europeia transportada para os trópicos através da escravidão, do isolamento, da chibata. […] Ouvem-se muitas chibatadas ao longo de todo o movimento. Há a percepção da fragilidade, não apenas do oprimido, mas também do opressor, que só encontra no uso da força a frágil possibilidade de manutenção do poder.” Sobre as influências da viagem de EG ao Xingu: “Ouvem-se aqui dinâmicas diferentes que representam os movimentos das danças indígenas, não em suas melodias, mas em suas pulsações rítmicas. Desta maneira, a música dedicada ao mais primitivo é também a mais moderna, no nível das dissonâncias.” Sobre a Parte IV, que representa o modernismo brasileiro: “São estruturas arquitetônicas brasileiras, é a homenagem à Brasília e seu regente, Oscar Niemeyer. No segundo submovimento, ouve-se, surpreendentemente, uma escola de samba tocada pela orquestra de cordas.” Isso me faz lembrar da 6ª Sinfonia “Pastoral”, de Beethoven em que os sons remetem a uma festa de camponeses e, em seguida, a chegada de uma tempestade, se não me engano. Cito apenas para uma referência comparativa nas tentativas de se “musicar” uma narrativa. Isso funciona? Acho que funciona mais o resultado da música em si. É pedir demais ao ouvinte. Nessa “ambição” de Gismonti fica uma sensação de “dar um passo maior que as pernas”.

Independente das pretensões de Gismonti, é uma peça de fôlego em que não faltam momentos de beleza, principalmente nas partes V, VI e VII. Aí mostra seu talento composicional costumeiro com belas melodias que exibem influências de Debussy e Ravel e, claro, de Villa-Lobos. Nas primeiras ‘partes’, a mistura não é coesa: temas nordestinos, indígenas, urbanos, “metal/martelado” de Penderecki, Mozart, Beethoven, contrapontos e Bach, por vezes, não se fundem direito.

Em sua experiência anterior pela gravadora ECM, Meeting Point as peças são mais curtas e, na minha opinião, mais bem resolvidas. Meu amigo Edemar Viotto discorda. Agora, o melhor em termos de arranjos orquestrais está no álbum Nó Caipira, infelizmente inédito em CD no Brasil. Esse álbum é o Gismonti que mais gosto, junto com o genial Dança das Cabeças, que fez com o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos. Em  pode-se dizer que EG se supera na orquestração e faz juz a Villa-Lobos. Palácio de Pinturas é um monumento. Parece que estamos no meio de uma floresta virgem, sós. As cordas são dramáticas e os “pássaros” do percussionista Zé Eduardo Nazário apenas aprofundam essa sensação. Interessante como, sem querer ser explicitamente narrativo, é. Palácio é climático e épico.

Igualmente épico é Sertão Brasileiro. A entradas das cordas é solene, grave. É uma peça genuinamente erudita e tem referências de Villa-Lobos. O Sertão mais intenso e rico está mesmo em  e não em Saudações. Nesta música, as cordas formam um tecido denso com o naipe das madeiras. A peça a seguir não é para orquestra, mas é uma homenagem a Villa-Lobos e chama-se Selva Amazônica. Ouço Nó Caipira com frequência há mais de trinta anos.

O segundo CD que compõe Saudações é uma série de performances de EG e seu filho Alexandre Gismonti. Duas das faixas são solos do filho: Palhaço e Chora Antônio, composição dele. Saudações, que dá nome ao disco e faz parte de Nó Caipira, é tocada somente por EG. O restante são em duos e, quase todas, composições de Egberto bem conhecidas. É um show de virtuosismo.

Para quem imaginava que apenas os vírus eram transmissíveis, fica provado que talento, pode sim, ser também “transmissível”. A “alma” Gismonti está presente no filho. A diferença é que o filho é menos “esquizofrênico”. Gismonti, como o americano Ralph Towner, são violonistas que parecem tocar em “overdub”: passam, muitas vezes, a sensação que são dois, quando são um. O CD “violonístico” é inteiro bom. Os destaques são o meddley Mestiço & Caboclo e Água & Dança, que faz parte do memorável Dança das Cabeças.

Bom, o que dizer, apesar das ressalvas? Compre o disco.

Ouça Zig Zag, com Gismonti e o filho Alexandre:


sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O lugar comum de João Donato

Quando converso com meu amigo Alberico Cilento, uma das pessoas que mais conhece de música em São Paulo, vira e mexe o João Donato surge no meio dos assuntos. Uma vez estavam lá ouvindo música, conversando e Donato perguntou se podia fazer um café. E lá foi ele para a cozinha. Voltou com um bule numa das mãos e a xícara na outra. Ao notar que tinha um Steinway de quarto de cauda na sala, aproximou-se e viu que sobre ele estavam algumas partituras de música italiana. Uma delas era a de Parlami d’amore. Sentou-se, começou a tocar Parlami… e ficou improvisando sobre o tema. Alberico comentou que não revelava esse gosto por música italiana aos amigos, basicamente, amantes do jazz. Disse que, desde criança, gostava de um pianista daqueles que a gente chama de “piano cascata”, “flamboyant” etc, que tocam floreado, o Carmen Cavallaro, americano de ascendência italiana. Donato disse que gostava dele também: “quem toca como ele é gênio.” Lembraram do filme Melodia Imortal (The Eddy Duchin Story, de 1956, direção de George Sidney e protagonizado por Tyrone Power e Kim Novak), em que o Cavallaro “dublara” Power no piano (foi lançado em DVD no Brasil).

Na semana passada, João apareceu novamente numa conversa por telefone com Alberico. Disse que, em certa ocasião, Donato dissera que suas músicas preferidas eram Invitation, de Paul Webster e Bronislaw Kaper, e Speak Low, de Kurt Weill. Resultado: fui ver se tinha algum registro delas. E nessa, fiquei a ouvir João Donato o dia inteiro.

Retrato do artista quando jovem
Em Lugar Comum, gravado em 1975, tem um texto do próprio, muito bom, explicando que era seu segundo álbum com letras. Uma passagem marcante é quando fala justamente da música título: “A origem da primeira música, Lugar Comum, que dá nome ao disco, é um assobio de um homem descendo a canoa no Rio Acre, em Rio Branco. O rio passa bem no meio da cidade. Ao cair da tarde, eu estava lá, pequenininho ainda, com uns sete ou oito anos, não me lembro bem. Passou uma canoa com o cara assobiando, e eu fiquei melancólico pela primeira vez na minha vida, um sentimento até então desconhecido para mim. Fiquei pensando, ‘por que eu fiquei assim?’, mas eu sabia que esse sentimento vinha daquele assobio e eu guardei a melodia.” Bacana, não? Revelações ou iluminações transformam nossas vidas. Quem imaginou que aquele acreano se transformaria no grande músico que é inventando aquela batida suingada meio latina tão única.

Nos anos 1970 João estava em contato estreito com Gil e Caetano. Os dois colocaram letras em várias composições antes apenas instrumentais. João também acompanhou Gal nos shows de lançamento de Cantar. Aliás, é nesse disco que estão uma das melhores interpretações de A Rã, feita em parceria com Caetano Veloso, e o estupendo Até Quem Sabe, em parceria com o Lysias Enio. O piano de João Donato é para nocautear até o mais insensível dos trogloditas. Flor de Maracujá é outra que está neste disco e tem letra do mesmo Lysias, seu irmão. Aliás, Cantar é um dos melhores de Gal Costa: Canção Que Morre no Ar (Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli), com um arranjo maravilhoso de Perinho Albuquerque é daqueles da gente cair duro. Outra, Lágrimas Negras, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, é uma das mais belas canções brasileiras de todos os tempos.

Cito outros registros que merecem ser ouvidos. Bananeira, letra de Gilberto Gil recebe tratamento jazzístico “samba jazz” no arranjo brilhante de um dos nossos grandes saxofonistas, J.T. Meirelles, e lembra um pouco a Banda Black Rio, com os naipes de sopros, o piano elétrico Fender Rhodes e a guitarra a la Steely Dan. E é cantada por Ed Motta.

Caetano Veloso, no álbum Cores, Nomes, canta Surpresa, breve e poética interpretação na música feita em parceria com Donato. Os temas lentos de JD têm sempre um clima de acalanto. Tem mais uma parceria com Caetano: Naturalmente.

Fim de Sonho, com letra de João Carlos Pádua, tem a interpretação precisa de nossa melhor cantora da atualidade – atenção, opinião minha –, a joão gilbertiana, Rosa Passos. Mais uma com Rosa: A Paz (João Donato e Gilberto Gil). Tudo na voz dela fica maravilhoso. Mais uma: Depois do Natal cantada pela bela voz de Djavan, mas a melhor é a de Nana Caymmi, lançado pela EMI-Odeon em 1979.

E tem mais: João toca trombone e bem. Em Olho d’Água, de Milton Nascimento, que está no Clube da Esquina 2 é dele o solo.

Vídeos:
JD/Bananeira




JD + Ed Motta

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Carlos Conde, o homem do jazz

O Conde e o guitarrista Russell Malone
Num tempo em que as lojas de discos como a Tower, a HMV e a Virgin já fecharam as portas ou estão para, quando gente do mundo todo “baixa” músicas pela internet, perdemos um pouco daquele sentimento de comunidade que elas propiciavam, sendo lugares em que encontrávamos os amigos, conhecíamos novas pessoas aglutinadas por gostos em comum.

Em São Paulo, há um ano mais ou menos, uma pequena loja na rua Clodomiro Amazonas, a Nuvem Nove, fechou. O dono, Zé Carlos conhecia tudo de rock e um público se formou: gente descolada, experts de vários gêneros – jazz, rock, rock progressivo principalmente –, críticos profissionais, músicos, uma grande tribo se juntava aos sábados e abarrotava a casa de pessoas, música e conversas paralelas. No mesmo lugar, hoje funciona uma loja de móveis.

Os paulistas e habitantes do resto do país devem invejar que o Rio tenha sabido preservar um lugar em que as pessoas podem ouvir boa música, tomar um café, trocar ideias sobre as últimas novidades. O Rio, talvez por ser uma cidade litorânea, favorece o encontro de pessoas nas praias, nos bares à beira-mar… e na Modern Sound, uma loja que existe há décadas em Copacabana. De repente você pode ouvir Daniel Senise, Pascoal Meirelles e outros tocando lá.

Há muitos anos, digo de coisa de quinze, vinte anos, a Gramophone, loja do Rio, abriu uma filial em São Paulo na av. Juscelino Kubitshek. Era tempo dos LPs ainda. Depois começou a trazer CDs importados, na maioria focadas em música clássica e jazz. Nos sábados de manhã virava ponto de encontro. Foi lá que conheci Carlos Conde. Como qualquer um que gostava de jazz, o conhecia, pelo menos de nome. Seu programa de rádio na Cultura era uma referência para se conhecer os útimos lançamentos. Falava alto e tinha um vozeirão grosso, reconhecível em qualquer lugar, mesmo fora do país.

Certa vez, estava em Toronto, na CN Tower, com sua mulher Dôra e a filha Denise. Um grupo de pessoas aproximou-se e um deles perguntou: “Você é o Carlos Conde do programa da Radio Cultura?” Haviam-no reconhecido pela voz. Aconteceu algo parecido comigo certa vez quando aproveitávamos uma queima de estoque de CDs das gravadoras Black Saint e da Steeple Chase na Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, em São Paulo. Perguntei-lhe – não sabia dessa história de Chicago ainda: “Como é que ele te reconheceu?” “Ah, deve ser por causa da voz”, respondeu.

Por timidez, nunca tinha tido a coragem de puxar uma conversinha com ele apesar de vê-lo com frequência. Acho que pesava a diferença de idade: uns trinta anos. Um dia o Alberico Cilento, a quem conhecia há tempos, me disse “Você não conhece o Conde”, e me apresentou. Ficamos amigos. Vi muitos shows de graça com ele. Quando Dôra não ia, telefonava convidando-me. Vi Jane Monheit duas vezes, Nnena Freelon, Carla Cook, Karrin Allyson, Russell Malone, James Carter, Kurt Elling e John Pizzarelli umas quatro vezes no Bourbon Street. Ele sempre ia conversar com os músicos, levava lps e cds para serem autografados, e eu lá, meio tímido, no meio daqueles feras.

Conde era um cara do jazz. Gostava de MPB instrumental também, não muito mais que isso. O formato preferido dele era o trio – piano, baixo e bateria – e os gêneros preferidos, o bop e o hard bop. Brincava com meus amigos dizendo que, se ele fosse jovem, seria fã de heavy metal. Gostava de “pauleira”. Não gostava de piano solo e odiava pianos elétricos. O Alberico me contou que, uma vez, quando estavam em Washington D.C., resolveram assistir a uma apresentação solo de Keith Jarrett no Lincoln Center. Com a casa cheia, acabaram assistindo no palco. O Conde dormiu na apresentação… diante de centenas de pessoas.

Há dois anos Conde deixou seus amigos órfãos de suas histórias, de sua mordacidade e de seu imenso conhecimento. Mesmo doente não perdia seu humor peculiar. Sem poder se locomover direito recebia seus amigos. Um dia liguei querendo dar uma passada por lá. Perguntei se estava bem e ele respondeu com aquele vozeirão: “Está tudo mal. E o pior é que daqui a pouco vem a fisioterapeuta.” Ele tinha um enfermeiro, cara grandão, jeito de boa gente, o Moisés, que cuidava dele. E não é que ele nesse pouco tempo já começava a gostar de jazz e meio que já conhecia os gostos do Conde? Uma vez quando estava lá disse: “O senhor quer que eu coloque aquele disco do Tony Bennett?”

O cantor preferido de Conde era Mel Tormé. Numa vez em que eu estava para ir a Nova York – ele tinha voltado de lá na semana anterior –, ligou e pediu que eu comprasse um CD de Tormé, George Shearing e Gerry Mulligan no Carnegie Hall, que ia ser lançado nos dias em que eu estaria por lá. Comprei. Duas semanas depois tocou o cd no seu programa.

A música que ele mais gostava era Body and Soul. Se existisse um registro dela por Odair José, teria comprado. No dia de seu enterro seu amigo Cláudio gravou um cd exclusivamente com interpretações de Body and Soul e distribuiu a todos os presentes. Moisés estava lá com sua família.

No primeiro show em que fomos sem ele, no Auditório Ibirapuera, meio chato, reunimo-nos no intervalo e pensamos a mesma coisa quase ao mesmo tempo. Alberico comentou: “O Conde deve estar lá falando: ainda bem que eu não fui.

Ouça Body and Soul, com Mel Tormé.




Mel Tormé, o cantor preferido do Conde, canta A Foggy Day: http://www.youtube.com/watch?v=tVCDZaApwV8